A última vez em que fui preso, cavalguei um cavalo e inaugurei uma boate eu estava com Miguel Paiva. O mesmo Miguel Paiva que vocês conhecem como artista gráfico, cartunista, roteirista, e criador de dois personagens mais famosos do que ele: a Radical Chic e o Gatão de Meia Idade, ambos seus alter egos, ela mais do que ele, mas isso pode ser preconceito meu.
Temos aí 46 anos de amizade e mais uns trocados de convivência. Fomos até vizinhos, nas cercanias da Fonte da Saudade, onde até hoje mora Ziraldo, que cheguei a pensar que fosse o verdadeiro pai do Miguel, tão ligados entre si os conheci.
Temos certeza de que nos conhecemos no Pasquim, quando a maior parte da redação do irreverente semanário tirou dois meses de férias compulsórias na Vila Militar, sem qualquer acusação formal. Para que o jornal continuasse existindo e circulando, Miguel ajudou a montar, com Marta Alencar, um mutirão de jornalistas do Rio e São Paulo, que a um dos dois confiavam suas solidárias colaborações, pagas, que jeito?, a leite de pato.
E foi assim que, com Miguel suando a camisa no meio de campo, o Pasquim não falhou um só número durante o confinamento de seu núcleo duro pela ditadura militar.
Incorporado em definitivo à equipe, depois da soltura do pessoal, passei a dividir com Miguel um espaço na garagem do número 32 da Rua Clarisse Índio do Brasil, na fronteira do Flamengo com Botafogo, a segunda sede do jornal. Era o melhor lugar da casa, pois suas dependências também funcionavam como estúdio fotográfico, o que vale dizer que as candidatas ao consagrador título de “Garota do Pasquim” ali desfolhavam a margarida a alguns palmos de nossas mesas de trabalho quando não sobre elas languidamente reclinadas.
Mas não foi por esse voyeurismo e impudicícias igualmente veniais que fomos presos, em 29 de fevereiro de 1972, a poucas horas da celebração de mais um bissexto natalício do Jaguar, o diretor da espelunca.
Tarde linda, ensolarada, a polícia à procura de um Chevette branco utilizado no assalto a um banco no centro da cidade, e Miguel, eu e o então fotógrafo Bruno Barreto circulando pela Lagoa num Chevette igualzinho, que Paulo Francis vendera ao jornal antes de se estabelecer em Nova York.
Porque não tínhamos como provar que o veículo era nosso, pois seus documentos não estavam no porta-luvas, fomos parar na 14.ª DP, no Leblon, e de lá levados para o Dops (a polícia política), em cujos arquivos apenas o precoce Bruno, a dias do seu 17.º aniversário, não possuía um prontuário.
Estávamos a caminho de uma entrevista com Ricardo Amaral, para um número especial do Pasquim sobre Ipanema. Miguel faria a entrevista e Bruno, os cliques. Na época cuidando da edição geral, nem precisava ter ido, mas, para sacudir a leseira vespertina, aderi à caravana. Tinha meus documentos em ordem, ao contrário do Chevette e do motorista. Miguel, o motorista, até os tinha, porém de acréscimo – eis o busílis – portava uma carteira falsa de estudante, com outro nome. Para quê? Para pagar meio ingresso em cinemas e teatros, pilantragem consuetudinária sem distinção de raça, cor, religião, sexo e classe social.
Fomos polidamente tratados no Dops. Desconhecia até então possuir uma ficha naquela malévola repartição. Com três ou quatro denúncias: ter organizado um abaixo-assinado pela libertação dos “Oito do Glória” (intelectuais presos quando protestavam contra a ditadura e a presença do general Castelo Branco numa conferência da OEA, no Hotel Glória, em novembro de 1965), ter participado de um debate “subversivo” no Museu da Imagem e do Som sobre o filme Terra em Transe (fora apenas o moderador), e trabalhar no não menos “subversivo” Pasquim.
“Não sabia de nada disso”, ponderei ao delegado. “Nunca me importunaram. Tenho viajado todos os anos para o exterior sem problemas.”
“Viajava”, interrompeu-me o agente da lei. De fato, dali em diante, por dois ou três anos precisei de licença da polícia para me ausentar do País nas férias.
No carnaval do mesmo ano, fomos num fusca do Rio até a fazenda do pai de Miguel, em Canguçu (277 km ao sul de Porto Alegre). Foi lá que montei meu último alazão. Num longo trecho dessa viagem fomos escoltados pelo Puma conversível do arquiteto e designer Sérgio Rodrigues, de quem me tornara grande amigo graças a Miguel, que também me apresentou, mais ou menos na mesma época, a outro arquiteto e designer ipanemense, Alberto Reis, em cuja piscina, debruçada sobre a Avenida Niemeyer, inventamos e praticamos um esporte carioca da gema: o piscibol, que nada mais era que um jogo de basquete disputado numa “quadra” de polo aquático, ou seja, numa piscina.
A inauguração da boate, bem, se tivesse um mínimo de pudor, me empenharia ao máximo em tirá-la de minha biografia. Tremendo mico. Jamais gostei de boate e aquela nem na zona sul do Rio ficava, e sim na cidade mineira de Governador Valadares. Era uma homenagem a Ziraldo, tanto que a batizaram de Toca do Jeremias, de que só me lembro das luzes estroboscópicas e da barulheira infernal.
Mas se nem o homenageado foi à inauguração, por que, com mil jeremias, Miguel, eu e nosso fiel escudeiro Bruno Barreto topamos a aventura? De minha parte, atribuo a indulgente concessão à viagem de volta, num Learjet, sem gastar um tostão.
Quem quiser saber a versão do Miguel, é só comprar Memória do Traço, seu livro de reminiscências, escritas e fartamente ilustradas, publicado esta semana pela Chiado Books.