Supremo não precisaria ter julgado medida provisória das terras indígenas
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, pela unanimidade dos 10 ministros presentes à sessão de quinta-feira, manteve a demarcação de terras indígenas com a Funai, foi uma forma de a Corte mostrar ao presidente Jair Bolsonaro que ele precisa cumprir o que determinam a Constituição e as leis.
A rigor, o Supremo nem precisaria ter julgado se Bolsonaro poderia ou não ter editado a medida provisória que transferiu da Funai para o Ministério da Agricultura a demarcação das terras indígenas. No dia 25 de junho, depois de ouvir líderes partidários, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), devolveu ao Palácio do Planalto a parte da MP que tratava da demarcação.
Argumentou que Bolsonaro não poderia assinar tal medida, pois dias antes o Congresso decidira, ao votar a medida provisória que fez a reforma administrativa e deu uma nova cara à Esplanada dos Ministérios, que demarcação de terras indígenas era com a Funai. E que a Funai deveria ficar no Ministério da Justiça, assim como o Coaf deveria sair da Justiça e voltar para o Ministério da Fazenda, agora transformado no Ministério da Economia.
Legalmente, portanto, a parte da medida provisória que se refere à demarcação das terras indígenas não existia mais. É prerrogativa do presidente do Senado devolver medida provisória que considera inconstitucional ou contrária ao que determina a Constituição. Do governo de José Sarney (1985/1990) para cá há vários casos de devolução. Em 2015, embora aliado de Dilma Rousseff, o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), devolveu uma MP que tratava da desoneração da folha de pagamento das empresas.
Tanto a parte da MP sobre as terras indígenas já não existia mais que na quarta-feira, dia anterior ao julgamento, havia dúvidas no STF se o relator da ação, ministro Luís Roberto Barroso, que concedera uma liminar para suspender os efeitos da medida provisória, a levaria ao plenário. Como Barroso optou por manter o tema na pauta, o plenário então decidiu que Bolsonaro não poderia ter editado a medida. O ministro Celso de Mello, o mais antigo do STF, disse no voto que a iniciativa de Bolsonaro “traduz uma clara, inaceitável, inadmissível e perigosa transgressão” às normas constitucionais. Afirmou ainda que ela deforma o princípio da separação dos Poderes.
O STF também não estava obrigado a julgar logo no primeiro dia de retorno das atividades do Judiciário a ação contra a MP, apresentada por PT, PDT e Rede. Mas a forma como Bolsonaro agiu durante o recesso, tanto do Legislativo quanto do Judiciário, fazendo declarações que negam fatos históricos e documentos oficiais, levou o STF a decidir-se por botar um freio no presidente. Entre as declarações polêmicas dele está uma em que contesta decisão da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos a respeito do sumiço, na ditadura militar, do estudante Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz.
Há no STF uma preocupação com as ameaças praticamente diárias do que se convencionou chamar de “ameaça de disruptura” da sociedade democrática. Essa ameaça partiria, principalmente, de movimentos que usam as redes sociais para fazer ataques aos pilares do estado democrático de direito. Entre eles, os alvos principais são o Congresso e o STF e seus representantes. Declarações como as que Bolsonaro tem dado contribuiriam para manter vivos esses movimentos todas as vezes em que atingem as instituições. Assim, a decisão do STF não visou apenas a MP da demarcação das terras indígenas, mas o contexto de todo um movimento que se sustenta, em parte, no que o presidente faz ou declara.