Será muito difícil compreender o jogo de manipulações políticas de que somos vítimas sem compreender quem são, de fato, os sujeitos do processo político brasileiro
As simplificações na definição das desigualdades sociais da população expõem a confusa pobreza do nosso entendimento das diferenças sociais que nos afligem. Será muito difícil compreender o jogo de manipulações políticas de que somos vítimas sem compreender quem são, de fato, os sujeitos do processo político brasileiro. Sem compreender que identidade têm e o que nela personificam socialmente, isto é, como manifestam e expressam sua diversidade e diferenças.
Os nomes classificatórios que damos, sem nenhum cuidado, tanto aos ricos quanto aos pobres, não expressam senão o viés ideológico que amortece nossa consciência social. Somos bons para inventar nomes para os outros e péssimos para reconhecer e compreender a condição social que expressa os interesses que demarcam seu agir e seu horizonte, seu ser propriamente social.
Em 2018, nos embates de rua, o vocabulário pobre de nossa política expôs nossa consciência: o Brasil está socialmente dividido entre “coxinhas” e “mortadelas”. Os “mortadelas” não se deram conta de que muitos “coxinhas” daquele ontem eram “mortadelas” de anteontem. Do mesmo modo que os “coxinhas” de ontem já estão a caminho de se tornar os “mortadelas” de amanhã.
Nossa carência de consciência crítica nos faz supor que fazemos política porque somos contra os rótulos que colamos nos adversários. O que não nos faz a favor de uma sociedade nova e democrática, baseada no direito à diferença e no reconhecimento da legitimidade da pluralidade social.
As eleições de 2018 mostraram que nossos critérios de reconhecimento das identidades diferenciais da sociedade brasileira não correspondem às subjetividades respectivas. Nem correspondem ao que são as pessoas distribuídas por diferentes categorias sociais. Não temos clareza quanto a quem é o eleitor-protagonista, nem esse eleitor tem clareza quanto a quem elege.
Os técnicos do classificacionismo social têm uma concepção rentista da pobreza, baseada em bens e dinheiro. Há numerosas pessoas, sobretudo no Brasil rural, cuja condição social não é definida pelo ganho monetário, mas pelo modo de vida, até pela produção direta dos meios de vida. Falar em fome é necessário e urgente, mas a fome não decorre sempre nem apenas da insuficiência de dinheiro para sobreviver. Há os que não têm dinheiro, mas têm o que comer. E há quem tem dinheiro, mas passa fome.
Nem todo trabalhador é pobre. Nem todo rico não trabalha. Aliás, em nossas classificações estatísticas, nem todo rico é propriamente rico. A classe média entra de cambulhada tanto na categoria dos ricos quanto na dos pobres. Depende das conveniências de quem fala. Muitas vezes depende de quem quer lesá-la politicamente.
A polarização pobre e rico nunca deu conta da diferenciação da sociedade brasileira. Do mesmo modo, que nunca foi verdadeiro que os pobres votam na esquerda e os ricos votam na direita. O Partido dos Trabalhadores cresceu e chegou ao poder com o apoio decisivo dos ricos. Perdeu o poder porque seus adversários tiveram o apoio decisivo dos trabalhadores. Isso ficou claro nos resultados eleitorais da região do ABC, suposto reduto do PT. A sociedade muda e a política roda.
Somos uma sociedade caracterizada por uma diversidade de padrões de classificação social. O que os economistas dizem que são classes sociais não o são. São apenas estratos de rendimentos. O que muitos sociólogos dizem que são classes sociais nem sempre são. São agrupamentos de coincidências sociais.
Classe social envolve cultura de classe e destino. O que os diferentes grupos da população dizem o que eles próprios são é completamente desencontrado com a classificação que se lhes pode atribuir com base em critérios objetivos. Não levamos em conta, no esforço de entender a nossa diversidade social, que as pessoas nunca sabem exatamente o que são quanto à estrutura de classes sociais. Acham que são uma coisa quando na verdade são outra.
É impossível compreender esta sociedade de desigualdades tão peculiares sem compreender que elas são o rótulo das diferenças sociais e que uma sociedade como esta não pode existir senão pela mediação da falsa consciência que a desfigura e a viabiliza ao mesmo tempo. As categorias sociais vivem desnorteadas pelo desencontro entre o falso e o verdadeiro.
O PT jactou-se, em seus últimos anos de poder, de ter transformado o Brasil pobre num país de classe média. Muita gente acreditou nisso. É claro que, quando se assume essas rotulações sociais, supõe-se orientações no modo de falar, de vestir, de comer, de viver e de votar. Mas, em 2018, a população votou como classe média. Em 2002, votara como classe trabalhadora, o que de modo algum quer dizer classe operária.
*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de ‘Moleque de Fábrica’ (Ateliê Editorial).