Arcabouço político dificulta comparação direta entre brasileiro e Johnson ou Trump
A ascensão de Boris Johnson à liderança do Partido Conservador britânico, o que o fará o próximo primeiro-ministro da democracia basal do Ocidente, fez o mundo político daquelas ilhas perder sua proverbial fleuma.
De comentaristas pedindo que a qualificação de palhaço seja evitada por ofender os profissionais da galhofa e questionamentos objetivos sobre as condições de jogo de um ator que já disse toda sorte de barbaridade num país em que ainda há quem se preocupe com isso.
Nada disso será obstáculo à entrada de Boris, o Vândalo, pela porta da frente do número 10 de Downing Street. Mas é lícito pensar o que ocorrerá se ele mantiver o padrão de agressividade gratuita e o espírito tosco que fazem lembrar que ser educado em Eton não é selo de garantia de fidalguia.
O que virá depois, Deus sabe, mas sempre é bom lembrar que o Reino Unido é o lugar no qual uma deputada perdeu o cargo e foi em cana este ano porque mentiu sobre estar dirigindo um carro com o celular na mão e acima do limite local de 48 km/h. Fiona Onasanya estava a meros 65 km/h.
Esse arcabouço institucional dificulta um pouco as tentadoras comparações da situação de Johnson, ou do americano Donald Trump, com o caso brasileiro. Cá nos trópicos, a inadequação da figura presidencial de Jair Bolsonaro (PSL) tem sofrido o efeito do tempo na cadeira. São quase meros sete meses, mas com um caráter canino que lhes aufere a qualidade temporal de anos.
O mais recente levantamento do Datafolha apontou isso, explicitando que 25% consideravam o presidente totalmente fora do figurino do cargo. Seus defensores mais árduos dizem que isso se deve ao fato de que Bolsonaro seria, ao contrário da classe na qual fez carreira, “autêntico”, “verdadeiro”, “sincero” ou outros adjetivos correlatos.
Pode ser, e funciona para os 22% que aprovam o seu jeitão de, como se diz, tio do churrasco. Apesar da precisão preconceituosa, a expressão em muitos meios trai também alienação em relação ao que se passa pelo país. O Brasil é uma nação de tios do churrasco, que tiveram um momento de expressão majoritária nas urnas em 2018.
Seja como for, há um processo de perda de paciência institucional com o presidente, em especial após o encaminhamento da reforma da Previdência.
O surto logorreico que Bolsonaro tem apresentado desde que viu sua principal pauta avançar na Câmara já se espraiou além do folclórico —indicar o filho para a Embaixada em Washington, criticar financiamento de “Bruna Surfistinha”, negar a fome no país, tentar desmoralizar o respeitado Inpe, há um pouco de tudo.
O caso politicamente mais sensível, do ponto de vista eleitoral, foi criticar os “governadores de paraíba” na sexta (19). Apelou ao modo bolsonarista de lidar com erros, que aliás aprendeu com o patrono da família vândala no poder mundial, Trump: disse que falou outra coisa, que é vítima de “fake news” e tal.
Ele tanto não acredita nisso que teve de se picar para a Bahia e colocar um indefectível chapéu de couro para provar-se amigo da região que mais o rejeita. Mas não é só ele.
Dois oficiais conhecidos do presidente o questionaram sobre ter chamado o general da reserva Luiz Eduardo da Rocha Paiva de “melancia”, ou seja, de ser do Exército e esquerdista (“verde por fora, vermelho por dentro”). Uma baita ofensa na esteira da imolação de generais no embate com olavistas e da geladeira pública aos brigadeiros ao não comparecer à data magna da Força Aérea —ainda reflexo do caso da cocaína no avião presidencial.
O general Rocha Paiva, um prócer da defesa do golpe de 1964 e de todo o arcabouço da ditadura, havia criticado a declaração dos “paraíbas” como antipatriótica. Entre seus iguais, é visto como corajoso.
A resposta do presidente para os militares foi a mesma: “fake news”, exagero. O fato de que o mandatário, ou mais provavelmente seu filho Carlos, tenha escrito em sua conta oficial no Twitter a imprecação foi simplesmente esquecido.
Como diz um desses militares, a piada cansou. O protagonismo da Câmara e do Judiciário sinaliza um pouco esse fastio com a sem-cerimônia do pessoal no poder. Mesmo no mercado que sempre incensou Bolsonaro, olhos se viram a cada menção sobre a figura presidencial. No empresariado de verdade, a dúvida já é sobre 2022, se João Doria, Luciano Huck ou outro.
E daí? Presidente algum cai no Brasil pela proverbial multa de trânsito —e olhe que Bolsonaro garantiu a sua num passeio recente de motocicleta. Figuras menores, como o ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti, sim, mas aqui o jogo é outro, a começar pelo 1/3 de fiéis bolsonaristas na praça.
É preciso uma crise sistêmica que una economia e política no mesmo barco, e isso não está dado. Se há risco de recessão, há também nesgas de otimismo em áreas como infraestrutura. Mas nunca é demais anotar: a corda anda bem esticada, e o presidente parece adorar tal dinâmica.