Eliane Brum: “Empresários não podem ser batedores de carteiras”

Respeitado por povos da floresta amazônica, o industrial Jorge Hoelzel Neto é um exemplo que o Brasil precisa enxergar com urgência.
Foto: El País
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Respeitado por povos da floresta amazônica, o industrial Jorge Hoelzel Neto é um exemplo que o Brasil precisa enxergar com urgência

Décadas mais tarde, em 2015, eu participava de uma expedição a remo, a bordo de canoas, promovida pelos indígenas do povo Juruna, da aldeia Mïratu, e pelo Instituto Socioambiental, para constatar e refletir sobre a destruição promovida pela usina hidrelétrica de Belo Monte na região conhecida como Volta Grande do Xingu, no Pará. Avistei um homem muito branco, que remava silenciosamente ao lado de um adolescente que depois eu descobriria ser seu filho. “É o Jorge”, esclareceu um ribeirinho da Terra do Meio. “Ele sempre tá com a gente.” Era Jorge Hoelzel Neto, um dos acionários da terceira geração da Mercur, empresa familiar que neste ano completou 95 anos.

Fiquei intrigada. Soube então que a bolsa de água quente que eu costumava usar no inverno é hoje feita com a borracha produzida pelas reservas extrativistas da Terra do Meio, uma das regiões mais espetaculares da Amazônia brasileira. E, hoje, uma das mais pressionadas pela grilagem que explode em toda a floresta, estimulada e autorizada pelas declarações e ações do Governo Bolsonaro. E, no Pará, também pelas ações e declarações do governador Helder Barbalho (MDB).

Em mais de 30 anos de jornalismo, me mantive saudavelmente desconfiada com relação a representantes do que se chama de “mercado”. Mais ainda na Amazônia, vítima preferencial de projetos grandiloquentes que resultaram em catástrofes ainda mais grandiosas, concebidos pela iniciativa privada em parceria com diferentes governos, em especial na ditadura militar (1964-1985). Mas não só. A Amazônia guarda as cicatrizes de vários desvarios, como Fordlândia, cidade que Henry Ford construiu à beira do Tapajós para produzir borracha para os pneus de seus carros, entre os anos 20 e 40, no século passado.

Assim, preferi observar Jorge Hoelzel por anos antes de me arriscar a escrever sobre ele e sua atuação. Talvez a observação tenha sido mútua, porque na primeira vez em que abordei o assunto, ainda naquela canoada de 2015, ele deixou claro que não se pavonearia por fazer qualquer coisa de bom na Amazônia. Quem o conhece sabe que Jorge tem alergia a ternos, autoelogios e jargões do meio corporativo. Aos 58 anos, ele se autodefine como um “homem família”, ao lado da esposa e de dois filhos. Gosta mesmo é de ficar quieto, ouvir muito e curiosar com os olhos bem azuis de sua ascendência alemã acomodados embaixo de um boné. Tudo isso depois de meditar, a primeira coisa que faz a cada manhã.

Poderia se dizer que o dono da Mercur ama a Amazônia. É um fato. Mas acho que nunca se ouviu alguém admitir o contrário. É mais exato afirmar que Jorge Hoelzel é um empresário brasileiro que não odeia a Amazônia. A maioria dos empresários brasileiros parece ter raiva da floresta, onde atuam com mentalidade do século 20, ou talvez ainda do século 19. Tudo o que fazem é arrancar os recursos minerais da floresta, usando-a como um corpo para exploração e deixando destruição ambiental e humana em seu lugar. Ou transformando uma das maiores riquezas do planeta em soja ou pasto pra boi. São tragicamente poucos os empresários como Jorge que alcançaram os desafios do século 21 e compreendem tanto que a floresta é estratégica para o controle do aquecimento global quanto que a Amazônia pode definir que tipo de futuro a nossa e as outras espécies terão nas próximas décadas. Compreenderam também que a maior riqueza da floresta é justamente a floresta, ela mesma, com toda a sua diversidade biológica e também humana.

A Mercur se tornou um laboratório de boas práticas na pequena (e conservadora) Santa Cruz do Sul, cidade gaúcha mais conhecida pelas plantações de tabaco que se espalham pela região. E também pela contaminação por agrotóxicos conectada a um número alarmante de suicídios de agricultores. A cada ano, Jorge se desloca do Sul ao Norte para acompanhar a Semana do Extrativismo da Terra do Meio (SEMEX), em geral promovida numa das reservas ou numa aldeia indígena do Médio Xingu, a alguns dias de viagem de barco de Altamira, no Pará.

Durante dias, indígenas, ribeirinhos e empresários como Jorge debatem a produção coordenada por uma rede de 27 cantinas, uma parceria de várias organizações e órgãos socioambientais com associações de extrativistas e de indígenas e pelo menos uma de agricultura familiar. Entre 2018 e 2019 foram produzidos e comercializados quase 925 quilos de borracha, na forma de manta, e 5.551 quilos na forma de blocos; 1.410 quilos de farinha de mesocarpo de babaçu; e 1.800 quilos de copaíba. Em 2018, houve uma produção recorde de castanha: quase 16 mil caixas, o que rendeu às comunidades quase 1,8 milhão de reais. É importante sublinhar: tudo isso mantendo a floresta em pé, mantendo a biodiversidade e mantendo o modo de vida dos povos indígenas e ribeirinhos. Iniciativas como essa, que se espalham por diferentes partes da Amazônia brasileira, mostram que é possível e urgente produzir para a vida – e não para a morte.

Em 2019, a Semex ocorreu pela primeira vez na cidade de Altamira, e não na floresta, devido à falta de segurança resultante das declarações e ações de um governo que quer abrir as terras protegidas da Amazônia para a exploração predatória. E que não tem nenhum conhecimento sobre a real riqueza da floresta, esta produzida por ribeirinhos, indígenas e quilombolas exatamente porque têm as suas áreas protegidas. Jorge Hoelzel estava no encontro. Depois de anos observando-o na floresta e fora dela, em sua relação respeitosa com seus habitantes e no carinho que homens e mulheres tão violentados por brancos demonstram diante desse típico alienígena do sul, sinto-me segura para publicar uma entrevista em que Jorge pode contar como ele também se transformou, tão vivo quanto a borracha que compra na Terra do Meio.

Quem sabe suas palavras possam espanar a poeira de algumas mentes que se ocultam sob o jargão do mercado. Desde a redemocratização do país, a Amazônia nunca esteve tão ameaçada por um Governo como hoje. A floresta e seus povos, humanos e não humanos, precisam de todo o apoio possível para combater tanto a ignorância quanto a ganância, irmãs siamesas que hoje dominam o Planalto.

Durante as duas horas de entrevista feitas na cidade de Altamira, os olhos de Jorge orvalharam algumas vezes. Ele sabe que por melhor que seja a borracha, nossos erros não podem ser totalmente apagados. Na Amazônia, eles viram sangue e fogo.

“Nós queremos atuar em coisas que criem vida – e não morte”

Pergunta. Como sua família foi se envolver com borracha lá em Santa Cruz do Sul, numa época em que a borracha vinha da Amazônia?

Resposta. A nossa família tem um jeito meio peculiar. A gente nunca teve aquela ideia de que enriquecer era importante. Nunca foi essa a nossa batida. A Mercur é uma empresa familiar, fundada por meu avô e meu tio-avô. Os dois eram muito inquietos. Eles sempre tinham a impressão de que estava faltando coisas. Meu avô falava com o mundo inteiro com rádio amador, era um cara meio de vanguarda. Estava sempre atrás de coisas que não existiam. E tinha uma pegada espiritual forte, de cura. Às vezes tinha fila de gente na frente de casa para ele dar passe. O irmão dele tinha problema com os pneus, que rasgavam e eles não tinham como consertar. Tudo era importado. E cada pneu que estragava era uma peça enorme que tinha que ser importada. Isso na década de 20, logo depois da Primeira Guerra. Aí eles foram tentar entender de borracha pra resolver esse problema. E pegaram gosto, porque a borracha não é uma coisa certa. A borracha, ela é uma coisa viva.

P. Viva?

R. Sim. Principalmente a borracha natural. Significa que ela trabalha com o tempo. Ela não é como o plástico, que se conforma e só vai terminar daqui a 500 anos. A borracha está sempre se transformando.

P. Quando você se formou na universidade, estava com a cabeça formatada para fazer o que todos fazem: lucrar e crescer. Como foi mudando?

R. Eu percebi que eu estava num movimento meio que indo pra outro lado, né. Eu comecei a trabalhar na Mercur em 15 de janeiro de 1986. E eu estava meio incomodado, porque a gente aprende na faculdade que precisa crescer, né? E eu vim com todo gás pra crescer, pra expandir. Começamos então a construir uma equipe comercial muito forte. Convenci o meu pai que nós tínhamos que juntar as cinco empresas e criar uma só. Aí surgiu a Mercur S.A. E estávamos começando a alicerçar um modelo de crescimento forte mesmo. Criamos outros produtos escolares, como cola. Começamos a importar coisa da China. Nós tínhamos todas as licenças para crianças, como Barbie, Disney… Tudo o que passava na televisão. A gente passava o tempo inteiro dentro de avião. Uma equipe grande, viajando e consumindo. Começamos então a fazer um trabalho forte para o reposicionamento da marca. Mas, quando acabou, parecia que faltava alma. A marca estava bacana, mas não era a Mercur. Queriam que eu fizesse um lançamento em São Paulo e botasse um terno bonito, sei lá, um Armani. Mas eu não sou um cara de terno, né? A Mercur não é isso! Então fui apresentado ao Sérgio Esteves, um consultor de São Paulo que trabalha alinhado com as questões da sustentabilidade. Descobrimos então que fazíamos tudo errado. A gente achava naquela época que, pegando um pedaço do lucro e doando pra uma instituição de velhinhos, crianças, sei lá, pronto, deixava todo mundo em volta feliz. Aí ele nos mostrou que sustentabilidade era trabalhar para que as pessoas se sustentassem por conta própria.

P. Que ano era isso?

R. Isso já era 2007. E eu estava muito insatisfeito, porque todo mundo trabalhava demais na Mercur. E eu não acho que a vida é só escritório. A vida é muito mais do que isso. Aí um dia liguei pra ele: “Sérgio… Assim, ó, eu não vou conseguir dormir fazendo uma coisa legal num lado e uma coisa não legal no outro lado. Eu quero fazer tudo junto”. Aí ele disse: “Bom… Aí o trabalho é maior”.

P. E como foi?

R. A gente tinha lá nosso quadrinho de valores cheio de pó, mas a gente nem olhava pra aquilo ali. Nosso negócio era ganhar dinheiro. Aí começamos a retomar as questões de princípios e de valores. Tipo… Qual é que é o nosso legado? O que a gente quer construir para a sociedade e com a sociedade? Pra que que serve uma empresa? Então a gente começou a se dar conta que a empresa não serve pra tirar dinheiro da sociedade, ela serve pra promover algum bem estar pra sociedade. E isso mexeu muito com a gente. Tanto que, na primeira vez que eu fui falar sobre a Mercur, fiz uma lâmina para o powerpoint que mostrava um cara batendo uma carteira. A gente se sentia batedor de carteira. Por quê? Porque a nossa estratégia toda de mercado era chegar o mais cedo possível no bolso do consumidor, antes do concorrente, pra esvaziar a carteira dele. E ele nem ter dinheiro pra comprar do concorrente depois, né. Essa sempre tinha sido a nossa estratégia.

P. Você acha que a maioria das empresas são batedoras de carteira?

R. Eu acho que são. Acho que são mesmo. E nem se dão conta disso. E a sociedade não se dá conta que funciona assim. Tentamos então nos enxergar do outro lado do balcão. Num período do dia, eu sou o empresário que quer vender o máximo de produtos possível, ao maior preço possível, com o maior lucro possível. Quando eu dou a volta no balcão, eu passo a ser o consumidor, eu quero ter o melhor desconto e o melhor produto. Como é que esses dois vão se entender, né? A gente percebeu que precisava construir uma coisa que nos fizesse querer estar também no outro lado, no lado do consumidor. Então, voltamos aos princípios dos fundadores e da família. E um dos nossos princípios é atuar em função da vida. Nós não queremos atuar em função de coisas que não criem vida. Ou que criem morte. Isso não pode ser só uma plaquinha presa na parede. Ela tem que fazer parte do dia a dia da empresa. Fomos então para São Paulo, juntamos um monte de pedagogos, professores, pra entender o seguinte: quando a gente faz bem pra educação e quando a gente faz mal pra educação? Aí eles foram diretos: “Olha, vocês são bacanas, os produtos licenciados são muito bacanas, mas tudo isso é um terror pra educação. Além de não servir para nada, ainda gera bullying para as crianças. E gera desperdício. E gera gasto desnecessário para os pais. Porque um produto que custa 1 real, com o rótulo da Barbie vai custar três. Aquilo mexeu com a gente, porque nós ganhávamos muito dinheiro com aquele negócio de importação da China. Era muito fácil, né? E quando você tem a licença, é só você que vende aquele produto. Não precisa nem fazer esforço de venda.

P. Quanto os produtos licenciados representavam no faturamento da Mercur?

“Não podemos iludir as crianças e fazer os pais gastar dinheiro à toa”

R. Cerca de 12%,13% do faturamento. Mas mais porque eles carregavam os produtos da Mercur junto, né? A lucratividade era muito maior, porque eram produtos que chegavam baratos, da China, e se colocava um preço ainda maior do que o produto de linha da Mercur, com a marca Mercur. Levamos mais de um ano até decidir tirar de linha. Quando acabou o período escolar de 2014 anunciamos que não trabalharíamos mais com produtos licenciados. Foi um terremoto. “Vocês são loucos! Tão rasgando dinheiro! Vocês não querem mais ganhar dinheiro?” Começamos então a visitar os clientes para explicar o que estávamos pensando e fazendo. Naquele momento foi muito importante uma característica da Mercur que a empresa nunca perdeu. Sempre tivemos um relacionamento muito forte com os clientes. Quase uma amizade. A gente faz as reuniões na cozinha. Não é restaurante chique. Não precisa nem de mesa. Tu tem a perna, bota o pedido em cima da perna. Isso foi importante.

P. Mas mesmo assim o faturamento caiu? Quanto?

R. De um ano pro outro, foi 15% de faturamento. Então, foi forte. Muita gente dentro da empresa não estava conformada com isso. Perguntavam: “Vamos ter um outro personagem da Mercur, né?”. Não, gente. Nós não queremos ter um personagem pra iludir as pessoas que elas estão comprando uma coisa que não podemos dar. Elas vão comprar uma borracha de apagar, e não um personagem. Imagina. Nós chegamos a ter a licença da Hot Wheels. Lançamos então uma coleção de carrinhos. A criança podia ter 15 borrachinhas de apagar. Que loucura! Ela precisa de duas no ano, pra que vai comprar 15, né? E claro que a criança pede isso pro pai e pra mãe. Então, não dá. Nosso papel não é o de iludir as crianças e fazer os pais gastarem dinheiro à toa. O nosso papel é fazer um produto que cumpra a função dele. Passamos a ter um sistema próprio de criação de produtos. Entra lá o usuário, o distribuidor, o lojista. Nós temos produtos pra educação, vêm pedagogo, professor, ajudar a criar produto. Na área da saúde, que a gente atua também, vêm fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, médicos, usuários. Todo mundo ajuda a construir nossos produtos.

P. Dá um exemplo.

R. As pedagogas nos disseram numa reunião que era preciso criar produtos para pessoas com deficiência, porque estas pessoas, que antes eram escondidas em casa, estavam entrando na sociedade e precisavam de produtos adaptados a elas. E o que existia era importado e muito caro. Criamos então um projeto que nós chamamos “Diversidade na Rua”. A gente queria entender a diversidade. Foi um processo de co-criação. Se os dedos da pessoa não têm movimento, por exemplo, é possível criar um dispositivo para que ela possa segurar a caneta. Nós éramos uma empresa de engenheiros e contadores. De repente, nos tornamos uma empresa com pedagogos, antropólogos, fisioterapeutas etc. A empresa precisava ter a diversidade do mundo dentro dela. E todo esse caminho novo fez com que começássemos a tirar produtos de linha.

P. Como o quê?

R. A gente desenvolveu uma esteira de borracha para a indústria do tabaco, por exemplo. Porque as esteiras eram de PVC e isso podia ser tóxico. Então nós desenvolvemos, porque Santa Cruz do Sul é a terra do tabaco. E começamos a exportar. Aí um dia eu fui dormir e acordei pensando: “Gente, nós vamos ganhar dinheiro com esteira de tabaco? Não faz o menor sentido pra nós”. Nós não queremos estar em negócios de tabaco, bebidas alcoólicas, armamentos, produtos que produzam maus tratos aos animais nem, obviamente, empresas que tenham trabalho infantil. A gente está fora desses negócios aí, né? Aí fomos comunicar pra empresa de tabaco que a gente não faria mais aquele produto… Aquilo foi um terremoto na cidade. Era um negócio ainda pequeno, mas, por baixo, estávamos estimando chegar a 50 milhões de dólares por ano. Tive que explicar para os amigos que não queria quebrar a indústria de tabaco, só não queríamos participar disso.

P. Que outro produto vocês desistiram em nome de princípios?

R. Um pessoal pediu uma peça que seria vendida para o Exército argentino. Perguntei: “Essa peça é pra quê, mesmo?”. Era para o cara escorar o braço pra segurar a metralhadora, ou a bazuca… ou não sei o quê… “Ah! Nós fazer um troço pro cara segurar uma bazuca?”. E me diziam: “Bah, mas tu vê, assim ele não vai se machucar!”. Mas não é para esse tipo de bem-estar que queríamos trabalhar, né…. Imagina. O bem-estar do cara pra dar tiro no outro. A gente também vendia muita peça técnica, para equipamentos agrícolas. Marcas grandes. Mas a gente nunca foi muito a favor daquelas plantações enormes, aqueles equipamentos agrícolas que espalham veneno por tudo quanto é lugar. Então vendemos essa parte do negócio pra uma empresa em São Paulo. Assim, a Mercur vem encolhendo de uns anos pra cá.

P. Quanto?

R. Na verdade, a gente não diminuiu. O que aconteceu é que nós paramos de crescer. Estamos com o mesmo faturamento de 2012.

P. Quanto é o faturamento de vocês?

R. Hoje nós estamos com 130 milhões de reais por ano e 650 empregos diretos. E a gente não vai mais pra banco aplicar o dinheiro. Essa foi uma solução importante que demos para a nossa caminhada. Tiramos o que não queríamos mais e vamos nos dedicar a desenvolver produtos nas áreas da saúde e da educação.

P. Dá um exemplo?

R. Nós temos uma linha de muleta, bengala, andadores, de alumínio. Mas nós queríamos diminuir o alumínio, porque a gente não acredita que o alumínio seja uma coisa boa pra saúde. A gente queria tirar o alumínio, porque aquilo também consome muita energia, né? Aí a gente montou um projeto chamado “Colabora”. Pra desenvolver produtos novos, como essa muleta com o mínimo de alumínio . Houve um grupo que se saiu muito bem, a gente pegou a ideia deles. É como se fosse uma pequena startup. Estamos desenvolvendo pra produzir no Brasil. Estamos montando a fábrica agora lá em Santa Cruz pra isso. Uma outra linha de produtos é de educação. Nós temos aquela cola branca. De criança, né? Bem tradicional. Mas a gente quer ter uma cola que não tenha petróleo. Estamos trabalhando pra desenvolver uma cola completamente atóxica, sem petróleo. E assim a gente vai indo.

P. Como a floresta amazônica entrou nesse projeto mais amplo de transformação da empresa?

R. O nosso projeto na Terra do Meio começou em 2010. A gente só comprava a borracha de São Paulo e, eventualmente, importava um pouco, quando faltava no Brasil. Meus avós compravam da Amazônia, mas, depois, a produção da borracha na floresta se desestruturou. E houve um grande incentivo para comprar a borracha no interior de São Paulo, porque uma grande estrutura foi montada, com grandes plantios. Tornou-se natural comprar borracha de São Paulo. Fui então conversar com o (socioambientalista) André Villas-Bôas, no Instituto Sociambiental, em São Paulo. Aí começamos a mandar gente nossa para as reservas extrativistas da Terra do Meio, para entender como poderíamos comprar a borracha dos ribeirinhos. Aí, em 2012 ou 2013, eu mesmo comecei a ir, porque queria entender.

“Encontrei na Amazônia gente que não quer tirar nada de ti, mas está pronta pra oferecer tudo o que tem”

P. A Terra do Meio não é um lugar comum. Mesmo para quem conhece outras Amazônias, ela é muito impactante. Como foi para você?

R. Foi quase um êxtase pra mim. E a maravilha de fazer a viagem de barco… Foi o máximo dos máximos. Dormir nas redes, andar de canoa. Parecia que aquilo já estava dentro de mim. Foi mágico, mesmo. Saí todo mordido de bicho. Mas foi mágico. Passei então a ir todo ano para entender o processo. Passei a refletir sobre como eu vinha me conectando com essa coisa do ser humano, da natureza. Encontrei ali o ser humano que não encontrava mais na cidade. Foi um encontro com gente. Gente que não quer tirar de ti, mas que tá pronta pra te oferecer tudo o que tem. (Os ribeirinhos) dão tudo pra ti, né? Eles abrem a casa. Chega uma canoa com 15 pessoas, eles abrem a casa, recebem a gente, dão a comida deles, que muitas vezes faz falta pra eles, eles te dão. Então, assim, sabe? Aquilo me chocou de uma certa forma. Nossa! Que mundo diferente é esse, né? Que coisa diferente é essa que tem aqui que a gente não consegue mais viver na cidade. Foi assim… Só fui comprovando que a gente estava certo. Aqui (na floresta) é a vida, né? Como é que a gente leva essa vida de novo pra cidade?

P. Essa mudança tem alguma relação com uma ideia de reparação? No passado a Mercur, como outras empresas, deixaram de repente de comprar a borracha da Amazônia porque o preço da borracha produzida na Malásia e depois no interior de São Paulo era mais baixo. Não houve nenhuma preocupação social naquele momento, apenas o lucro…

R. Não acho que seja uma questão de reparação somente pelo que a gente fez lá atrás, mas sim por toda uma economia regenerativa. A gente está em busca de regenerar a nossa economia, de regenerar as nossas possibilidades de obter matérias-primas naturais. Nada mais justo do que acessar matérias-primas a partir de onde elas nasceram. E a borracha nativa nasceu na Amazônia. Este é o caminho que estamos tomando para fazer esse resgate, que é um resgate da economia como um todo, e não simplesmente da Mercur. Sim, a Mercur participou desse movimento de comprar borracha mais barata da Malásia e tal, então tem uma culpa nossa nessa questão toda. Mas acho que é regenerar não apenas a nossa culpa, mas o modelo econômico. Como a gente vai em busca de um modelo econômico que se sustente ao longo do tempo? E a gente percebe que esse modelo econômico de buscar sempre o mais barato não tem sustentação.

P. Ainda é bem pouca a borracha que vem da Amazônia, né?

R. Só 2%. O restante ainda vem do interior de São Paulo.

P. E há perspectiva de aumentar isso?

R. Eu acho que tem, sabe? Eu acho mesmo. A gente tem feito um movimento lá no Acre, também.

P. Por que que é tão pouco ainda?

R. Eu acho que os ribeirinhos estão recém voltando para a borracha. Não é um trabalho fácil. O cara normalmente vai sozinho pra dentro da floresta. Passa no mínimo uma manhã ali cortando, e depois tem que buscar o látex. Quando ele volta pra casa, ele tem que logo produzir ou a manta ou o bloco, porque senão a borracha coagula, e aí já não serve mais pra nada. É um trabalho duro comparado à pesca e à coleta de castanhas, por exemplo. Mas a borracha dá sempre. E a castanha nem sempre. Chegamos a conversar se deveríamos botar meta para os ribeirinhos ou dar prêmio visando ao aumento da produção. Mas eu acho que não. Acho mesmo que isso não seria justo. Acho que eles têm a vida deles. E eu não quero que eles transformem a vida deles pra coletar borracha pra Mercur, sabe? Acho que borracha tem que ser um dos produtos da vida deles. Eles vão caçar, vão pescar, vão colher outras coisas, como a copaíba… Tem tanta outra coisa pra eles fazerem na floresta. A borracha é mais uma.

P. Se desse premiação ou botasse metas, estaria impondo a lógica do sistema capitalista a uma realidade totalmente diferente e, assim, violando o modo de vida ribeirinho…

R. Exatamente! E isso é tudo o que a gente não quer.

P. Em 2018, pela primeira vez a SEMEX (Semana do Extrativismo da Terra do Meio) foi numa aldeia indígena, a Tukaya, do povo Xipaya. Como foi essa experiência para você?

R. Há uns dois ou três anos, o Marcelo Salazar (coordenador do Instituto Socioambiental em Altamira), me perguntou: “Tem problema se os indígenas entrarem? Eles estão querendo colher borracha e tal”. Eu disse: “Ô, Marcelo…Se a Funai permitir que a gente compre deles, eu não tenho absolutamente nada contra! Que bom, que bacana, né, que eles possam entrar também!”. E aí, de uns anos pra cá, eles começaram a participar. E, no ano passado, quando o encontro foi lá na aldeia Tukaya, nossa! A borracha deles é a de melhor qualidade que nós recebemos até hoje. É impressionante a dedicação, o cuidado deles. E eu acho que isso acontece porque estão juntos, sabe.

P. Sei que a borracha da Amazônia sai mais caro para vocês do que a de São Paulo. Quanto?

“Pagar barato pode custar algo muito mais caro, que é a vida”

R. A da Amazônia custa quase o dobro do preço.

P. E por que que você resolve pagar duas vezes mais por uma borracha que você podia ter pela metade do preço?

R. Porque precisamos pensar mais no que é caro – e no que é barato. Nos significados disso. Primeiro: a qualidade da borracha, num seringal nativo, é muito superior à qualidade da borracha num seringal cultivado. Esse é o primeiro ponto. Segundo: no seringal cultivado, a produção é de larga escala. É uma arvorezinha plantada do lado da outra. Não nasce mais nada no meio daquele seringal. Na Amazônia, o seringal é uma estrada no meio da floresta. Nessa estrada tem a seringa, tem a castanha, tem a caça, tem a pesca. É uma comunicação completamente diferente do seringueiro com a vida dele. É uma floresta.

P. O seringal cultivado é tipo um latifúndio de soja, só que com seringueiras?

R. É. Numa cultura de grande escala. E eu não sou muito a favor de uma cultura única na terra. Eu acho que a terra precisa de mais coisas. Para fazer aquele cultivo de larga escala tu vai ter que matar um monte de outras coisas na volta, né? Então a terra não é mais uma coisa natural ali. É uma coisa construída. O cara que corta a seringa nesses cultivados é um assalariado. Na floresta, o seringueiro é o dono da situação. É ele que resolve quando é que vai descansar, quando é que ele vai dar a cochilada dele, se vai dar, se ele precisa acordar às cinco, às seis ou às sete… Essa é uma decisão dele, né? O trabalhador do seringal cultivado é contratado pra tantas horas, pra trazer tantos quilos de borracha. Então é diferente. Este é outro ponto. E este ponto é importante. Uma outra questão é que, para fazer a seringa cultivada lá no interior de São Paulo, tu precisou antes derrubar uma floresta nativa. Na Amazônia, não derruba nada. Pelo contrário, tu mantém a floresta em pé. E, quanto mais diversidade tiver, melhor até, porque mais coisas o ribeirinho tem pra coletar, pra levar junto pra casa dele. Essa diversidade é importante. É por isso que a gente acha importante extrair a borracha na floresta amazônica.

P. Me parece que a maioria das pessoas não entende que há um valor na floresta em pé. Ou melhor. Entendem o valor. Mas não entendem que vão precisar pagar por isso. Ou não entendem que o que parece barato, que em geral implica a destruição da floresta, vai custar a vida logo adiante. E não só a vida do ribeirinho ou do indígena, mas a deles também. Não dá mais para pensar o barato e o caro sem colocar o custo socioambiental na equação, sem colocar a crise climática no cálculo…. O valor hoje precisa ser pensado em outros termos.

R. É a própria diversidade, né? Quando se cultiva uma coisa na floresta não precisa derrubar todo resto que está na volta. Como é que tu cria uma população mais diversa de plantações ali, que te dá mais vida, que te traz mais vida? Esse é o papel da borracha nativa, da seringueira nativa. É estar no meio dos outros.

P. Estar no meio dos outros é a chave para viver nesse mundo, né? Mas, Jorge, me fala mais sobre o custo de manter a floresta em pé, porque acho que a maioria dos teus colegas empresários está bem longe de entender isso.

R. Me vem essa questão da finitude do nosso planeta. Quando eu digo que todo mundo tem que pagar pela floresta em pé, é isso mesmo. A Amazônia não é só do Brasil. A Amazônia é de todo mundo. Tudo é de todo mundo. O campo, lá no Rio Grande do Sul, onde se cria gado, também é de todo mundo. Então, se a gente não tiver um acordo mundial do que a gente vai fazer pra cuidar do nosso planeta, como é que nós vamos viver aqui? Parece que a gente está separado em tribos, né? A tribo de lá, a tribo de cá. E aquele lá diz que aquilo é dele, esse aqui diz que aquilo é dele. Mas não é. Na verdade, não é. Tudo o que a gente faz aqui reflete lá, o que faz lá reflete aqui. Quando é que a gente vai ter essa consciência de que nós precisamos nos unir mais como seres humanos que somos, pra cuidar do que que a gente está fazendo? A gente está só botando mais gente, estamos procriando numa velocidade feroz. Não sou contra nascer gente, não é isso. Mas nós vamos ter que aprender a viver. Está cada um olhando pro seu umbigo. Olhando pra suas posses, olhando pra como vai fazer o que tem crescer e como vai ganhar mais. Mas não é meu, né? Isso não é meu. Essa é a questão.

P. E como um empresário pode colaborar para o resgate do sentido de comunidade?

R. Quando um empresário define que precisa fazer o negócio dele servir à sociedade, ele precisa entender essa sociedade que ele quer servir. E essa sociedade tem que dizer pra ele como é que ela quer que ele sirva a ela. Como é que a gente começa a construir uma vida realmente mais comunitária? Acho que a gente esqueceu das comunidades. No ano passado, estando lá na aldeia Tukaya, me veio muito forte essa questão da comunidade. Eu conversei com o cacique um pouquinho, eu queria entender o que que eles faziam naquela oca lá no meio. Ele me disse: “Aqui a gente faz as cerimônias da gente, faz as danças da gente. E, quando as pessoas se desentendem, eu pego os dois desentendidos e levo lá pra dentro. Fico olhando eles conversarem. Eles só saem dali quando tiverem resolvido a confusão entre eles”. Eu disse: “Puxa vida, como a gente tá longe desse verdadeiro cultivo da comunidade, né?”. Então eu acho que ser comunidade é o que está faltando pra nós. A crise climática é resultado daquilo que nós desentendemos. Dessa individualidade muito forte, em que cada um está pensando só em si próprio e ninguém está querendo conversar com o outro para saber o que ele está pensando. Nós nos isolamos. Só que faltam pedaços neste quebra-cabeça.

P. Que pedaços?

R. Tenho percebido que as pessoas fazem leituras em que faltam pedaços. Como um quebra-cabeça que a pessoa quer fechar de qualquer jeito, só que está faltando uma peça. Tipo o rosto de alguém. Mas falta a orelha, né? E aí, como faz sem orelha? Aí dizem: “Não faz mal, fecha assim mesmo”. É assim que parece que tem funcionado o raciocínio hoje. Me parece que muitos empresários não percebem que há um custo na pecinha que está faltando. Por exemplo. Eu pego a borracha petroquímica porque ela é mais barata. É mais barata porque não é viva como a borracha natural, então não vai deteriorar tão rápido. Tudo parece mais fácil. Maravilha, né? Mas não. Como ela é produzida? É extraída do petróleo? Qual é o custo do transporte? Qual é a energia necessária para beneficiar esse petróleo e transformá-lo em borracha? E para tirá-lo da terra? Esses custos a gente não está enxergando. E precisa enxergar. É a orelha que falta no rosto. O que a gente precisa é trazer a orelha de volta. Aí vai saber o custo real, o quebra-cabeça completo. Porque alguém paga por esse custo. E, no caso da floresta, está todo mundo pagando por ele. Só que as pessoas não percebem. Só começa a perceber quando chegam as mudanças climáticas. Mas então já é difícil mudar o curso. E o que eu percebo é ainda pior, porque isso não está nem sendo colocado para as pessoas enxergarem. Um número extremamente reduzido de pessoas enxerga, e são estas que têm o controle. Somos nós, os empresários, que temos o controle disso. Mas muita gente está passando a mão, dizendo para esquecer isso, para ir por um caminho mais fácil, ou afirmando que a tecnologia vai encontrar a solução para todos os problemas. Acho lindo toda essa tecnologia. Mas será que é isso que precisamos? Eu fico pensando assim: se a gente colocar todos os custos sociais e ambientais de uma cadeia inteira da borracha sintética, será que ela vai custar mais barato que a borracha natural? Será que é isso mesmo?

P. Porque é só eliminando o custo socioambiental que fica mais barato, né? E, hoje, o custo socioambiental é a diferença entre viver num planeta ruim ou num planeta hostil.

“As ONGs que eu conheço na Amazônia trabalham com a dignidade das pessoas”

R. Exatamente.

P. Que impacto teve essa experiência amazônica em outros negócios?

R.  O modelo de fazer negócio muda. Muda também onde a gente vai buscar a matéria-prima que a gente usa. A gente usa muito tecido de algodão para alguns produtos da área da saúde, como tipoias, por exemplo. Então: “Gente, onde é que está o algodão orgânico no Brasil?”. E aí a gente foi conhecer em Porto Alegre, mesmo. Tem uma associação lá, nas vilas atrás do aeroporto. Tem uma associação de mulheres que se chama “Justa Trama”. Elas têm uma ligação com agricultores do Ceará que plantam algodão agroecológico. Uma empresa em Minas Gerais faz a fiação, faz o tecido, e elas compram esse tecido e fazem produtos. Então, através delas, nós fomos conhecer, e acabei indo parar no interior do Ceará. Estamos sempre em busca de encontrar onde é que estão esses movimentos de vida. Pra gente poder traduzir isso e levar pra cidade.

P. Como é o movimento de vida nas reservas extrativistas da Terra do Meio?

R. Eu acho que está muito bem construído e muito bem pautado. Gosto muito de elogiar as instituições, as organizações não governamentais que trabalham na região, como o Instituto Socioambiental e o Imaflora, por exemplo. Porque essas organizações trabalham com a dignidade das pessoas. Conheci um garoto uns anos atrás. Ele tinha deixado a floresta, foi para a cidade e se drogou. Então percebeu que não era por aí, que precisava voltar para a floresta. E voltou. Esse é o tipo de movimento que essas organizações fazem. De mostrar caminhos que não sejam os da violência e da ilegalidade, caminhos que respeitam a autonomia e a dignidade das pessoas. Dão escolha para as pessoas, mostram que elas podem escolher por si mesmas por onde preferem andar. Isso eu acho que é muito importante. Há alguns anos atrás, ribeirinhos e indígenas não sentavam à mesma mesa. Estavam um apontando a arma para o outro, o arco e flecha um para o outro. Hoje estão juntos, construindo algo. Testemunhar isso me emociona muito.

“A verdade só aparece quando todo mundo está junto”

P. Como você avalia o atual contexto político brasileiro, no qual o governo Bolsonaro defende a abertura das áreas protegidas da floresta, como a dos indígenas, ribeirinhos e quilombolas, para a exploração do agronegócio e para a mineração?

R. Eu acho que esse Governo não tem sensibilidade, né? Porque ou eles não conhecem a realidade ou não querem conhecer.

P. Qual das duas opções você acha que é?

R. Eu acho que eles teriam meios para conhecer. Então, se não conhecem, é porque não querem, né? O governo está tomando algumas decisões sem conhecer a realidade, sem conhecer o impacto das decisões que eles estão tomando. Na empresa, quando a gente quer desenvolver um produto, nós juntamos todo mundo que está envolvido com aquele produto. Por quê? Porque todo mundo traz o seu problema. O lojista traz o problema dele, o usuário traz o problema dele, a indústria traz o problema dela, o fornecedor traz o problema dele. Pra gente conseguir chegar numa coisa que se sustente minimamente pra todo mundo. Não vai ser 100% pra ninguém. Se for 100% pra um, deu errado! Todo mundo tem que abrir mão de alguma coisa. Eu olho pra esse governo e penso: “Gente, esses caras pelo menos têm que entrar na floresta, eles têm que conhecer, eles têm que ver a realidade”. Talvez tenham que estudar um pouco mais, talvez tenham que viver um pouco mais, né?

P. E por que é assim?

R. Parece que um é contra o outro, parece que o outro é visto como barreira. Enquanto o governo não enxergar que está governando pra todo um povo, não interessa se votou ou se não votou nele, será difícil. Se quer ser um governo de um país, ele tem que olhar pra tudo. Não pode se colocar na situação de dizer: “Ah, eu vou fazer agora como eu penso!”. Não. Senão, não é governo. Tanto faz o lado que está, vai ser uma ditadura. Porque vai impor a verdade dele. E a verdade de ninguém é uma verdade absoluta. A verdade só aparece quando todo mundo está junto. É quando os livros se abrem. Aí aparece a verdade. De certa forma, todo mundo no Brasil vinha conquistando o direito de colocar sua palavrinha na história, né? O que me parece é que esse governo está tirando a oportunidade de algumas pessoas escreverem a sua parte na história.

“É na diversidade que a gente vive, e não no individualismo”

P. E como você analisa os seus pares, isso que se chama “mercado”? Uma parte importante do empresariado foi protagonista do impeachment de Dilma Rousseff (PT) e depois apoiou Jair Bolsonaro (PSL)…

R. Acho que há uma ilusão, e acreditamos nessa ilusão. E essa ilusão nos mostra caminhos que fazem com que pareça que não há outra escolha. O caminho do avanço econômico e financeiro, me parece, é de que a solução seria continuar crescendo. O modelo econômico é de crescimento infinito. Promete um crescimento infinito. E isso não é verdade. Não existe crescimento infinito. Tudo para de crescer em algum momento. E o planeta é finito. Então, como é que a gente espera manter um crescimento infinito num planeta que é finito? Qual é a tecnologia que vai existir que vai conseguir dar conta disso? Pode ser que eu seja muito burro e não entenda de tecnologia, mas não consigo acreditar que isso vai dar certo. Acho que a tecnologia ajuda um monte, mas não é só ela. Precisamos entender que nós somos uma comunidade. E não é só a comunidade humana. É a comunidade humana vivendo com outras comunidades. Parece que nós somos o dono do campinho, né? Podemos fazer e acontecer e dominar tudo. Mas a realidade está mostrando que não temos tanto domínio assim. Sabe o que eu acho? Quando eu disse antes que a Mercur era uma empresa de engenheiros e contadores, é isso. Antes a gente só tinha essa visão do engenheiro e do contador. Então a gente começou a trazer outros olhares e passamos a enxergar mais. Mas, como assim? Uma fábrica de borracha com antropólogo? O que vocês querem com isso? É, gente, mas é que a vida não é a fábrica de borracha. Tem mais coisas na volta dela, né? Assim como a floresta não é uma única árvore. Há várias árvores em volta dela. E essas outras árvores é que dão a sustentação para que aquela árvore possa sobreviver o tempo que ela precisa sobreviver, e ela também dá condição para as outras sobreviverem. É na diversidade que a gente vive, e não no individualismo.

P. Você é um empresário que não quer crescer?

R. Não é que eu não queira crescer, mas não é o meu foco. Não é a minha busca. Não é pra isso que eu trabalho. Se crescer é porque alguém está achando bom o que eu estou fazendo. E desde que o meu crescimento não atrapalhe outras coisas. Mas, se não puder crescer, não tem problema nenhum. A nossa responsabilidade, hoje, é muito maior. Se a responsabilidade é crescer, é fácil. Derrubando os outros, tu vai crescendo. Agora, a responsabilidade de fazer as coisas de uma forma que se sustente economicamente, ambientalmente, socialmente e humanamente, é muito mais difícil. É isso que queremos que dê certo. Não é crescer. Minha busca atual é viver conforme. E é muito difícil a gente viver numa conformidade com tudo o que a gente acredita.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

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