Ao usar informações mentirosas para atacar Miriam Leitão, Bolsonaro chama a atenção para as vítimas da repressão nunca entregues às famílias
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) mexeu em um tema delicado ao expressar o que pensa sobre a jornalista Miriam Leitão na sexta-feira (19/07/2019). Apesar da redemocratização do país, parte da memória dolorosa dos vinte e um anos de ditadura permanece nas sombras como um tabu.
A passagem dos militares pelo poder federal deixou um rastro de 434 adversários mortos. Desse total, 210 continuam desaparecidos. Não se sabe onde os agentes da repressão os descartaram sem consternação. Se foram enterrados ou – como se suspeita em relação a muitos – jogados em alto mar.
Um agente da repressão, o ex-delegado Cláudio Guerra, confessou ter incinerado 12 corpos no forno de uma usina. Por fatos assim, a referência feita pelo presidente à ditadura revira um passado que, para os militares, deveria ser esquecido.
Se um dia o presidente da República quiser fazer um gesto de grandeza em relação ao passado, usará o poder de chefe do Executivo e comandante-em-chefe das Forças Armadas para fazer um gesto em favor das famílias dos desaparecidos políticos. A indicação de uma única cova com restos mortais dessas pessoas confortaria parentes ainda vivos.
Passadas mais de quatro décadas do sumiço das últimas vítimas, pais e mães também morreram. Ao mesmo tempo que alimentavam a vã esperança de enterrar seus filhos, definharam de tristeza e revolta.
Pelo comportamento agressivo de Bolsonaro em relação ao assunto, não se deve esperar qualquer iniciativa nesse sentido. Sobre esse passado execrável na história das Forças Armadas, o capitão costuma se manifestar com a expressão “quem procura osso é cachorro”. Portanto, falo apenas em tese.
Não há qualquer explicação militar, política, moral ou religiosa que justifique a punição eterna – além da própria morte – imposta aos parentes. Eles têm o direito de saber o que se fez com seus entes queridos, quaisquer que tenham sido suas escolhas na luta contra o regime autoritário.
Não interessa se a vítima praticou atos violentos, como os militantes das organizações que partiram para a luta armada, ou se confrontavam o regime de exceção de mãos limpas, caso dos integrantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), contrários às ações violentas.
O ritual de sepultamento e culto aos mortos, mesmo em tempo de guerra, pertence à categoria de preceitos universais da dignidade humana. Está relacionado às tradições culturais e às crenças espirituais. Não importa se os desaparecidos políticos ou seus familiares professam – ou professavam – alguma religião ou se são ateus.
Por isso, no Brasil, existe até um dia para homenagear os que já não estão entre nós, o Dia de Finados. Mães, pais, irmãos e filhos de desaparecidos estão tolhidos de homenagear seus parentes nos túmulos, ano a ano, no Dia de Finados.
Importante tentar entender o que leva um grupo de brasileiros, financiados pelos cofres públicos, a quebrar as regras civilizatórias para punir os inimigos. Não se fala aqui apenas de pessoas mortas em combate. Fala-se, principalmente, de mulheres e homens executados depois presos. Desarmados e indefesos, tiveram as vidas interrompidas sob a tutela do Estado.
Algumas pistas ajudam a compreender a perversidade de se privar mães, pais, irmãos e filhos de homenagear os entes queridos. Uma delas se deve ao fato de que uma parcela dos desaparecidos foi eliminada depois de severas torturas. Basta olhar as fotos disponíveis de mortos pela repressão daquele período – deformadas por sevícias – para se decifrar parte desse enigma.
As imagens mostram corpos desfigurados pela barbaridade insana dos torturadores. Quem praticou esse tipo de atrocidade com um semelhante tem motivos para manter o passado encoberto. Essa, porém, é apenas uma das explicações.
Um número não sabido das vítimas tombou em combate, a exemplo do que ocorreu com alguns na Guerrilha do Araguaia. Mesmo na selva do Pará, porém, a maioria morreu depois de presa.
São desonestas e injustas todas as tentativas de equiparar as ações armadas da esquerda radical com a dimensão e os métodos de atuação dos representantes da ditadura. Não se comparam os métodos nem o poder de força. Tampouco os números, embora esse seja um quesito menos relevante, pelo valor incomensurável de cada vida.
De qualquer forma, registre-se que, mesmo nas contas mais infladas pelos defensores do governo militar, as vítimas da esquerda somam cerca de um quarto dos mortos pela repressão. Dos casos conhecidos, todos foram enterrados pelas famílias.
No controle do Estado
No controle do aparato do Estado, pago com o dinheiro dos contribuintes, a linha dura do regime fardado estraçalhou os inimigos. Assim como é verdade que algumas das organizações lutavam para implantar a ditadura do proletariado, também é fato que muitos jovens partiram para a radicalização depois de perseguidos pelos governos decorrentes do golpe de 1964.
A principal diferença entre os dois lados, no entanto, está na punição dos envolvidos no confronto entre governo militar e oposição. Pelo lado da oposição, além das mortes – pena capital –, os arquivos militares registram a prisão ou detenção de dezenas de milhares de oposicionistas.
Entre os crimes que cometeram, os mais violentos foram assaltos a bancos com mortes e execuções de alguns traidores ou de pessoas identificadas, às vezes por engano, como integrantes do aparato sanguinário do governo fardado.
Os autores dessas ações, quando identificados e presos, na grande maioria das vezes passaram a integrar a lista de mortos e desaparecidos. Pagaram com a vida. Outros milhares, julgados pelas instâncias militares, cumpriram penas de alguns anos na cadeia.
Sem punição para torturadores
Pelo outro lado, nenhum agente da repressão foi punido, por exemplo, pelos crimes de sequestro, tortura, estupro, morte e desaparecimento de brasileiros envolvidos do combate à ditadura. Nenhum. Esse único fato torna incomparáveis as ações dos dois lados desse confronto.
Sem exceção, os responsáveis pelos crimes contra a oposição permaneceram livres, impunes, vivos e remunerados pelo Estado. Esse é o resultado da Lei da Anistia aceita pelos generais em 1979, que vetou qualquer tipo de penalização dos dois lados a partir daquele momento. Como ninguém do lado do governo até então pagara por infringir leis humanitárias, todos permanecem até hoje imunes a qualquer pena.
Esse passado vergonhoso para as Forças Armadas explica em parte o comportamento arredio, por parte dos militares, a qualquer gesto que possa diminuir o sofrimento, especialmente dos familiares dos 210 desaparecidos. Some-se a esse aspecto o temor que o governo ditatorial tinha de que os mortos fossem transformados em mártires da oposição. Essa circunstância, em parte, explica a falta de condolências.
Cabe ressaltar que, depois da redemocratização, os militares recolheram-se aos quartéis numa espécie de silêncio obsequioso, mas sem condolências, em relação ao que fizeram. Participaram da reorganização institucional dentro do Estado de Direito e contribuíram para os governos civis. A eleição de Bolsonaro marca uma mudança nesse comportamento – pelo menos na boca do comandante-em-chefe.
Guardiões do passado
Por tudo o que escondem, os guardiões do passado desonroso têm mais a lucrar do que a perder com o manto de segredos que martiriza as famílias dos desaparecidos. Nesse contexto, as infelizes e mentirosas referências a Miriam Leitão revolvem fatos que, para os militares, seria melhor que continuassem no esquecimento.
Recorde-se que, aos 19 anos e ainda estudante, Miriam foi presa e torturada grávida. Processada, denunciou os maus-tratos, fato registrado e não desmentido pela Justiça militar. Nos meses seguintes, foi julgada e inocentada em todas as instâncias da ditadura dos crimes de que era acusada.
Portanto, se é para mexer no assunto, o presidente deveria se preocupar em pelo menos aliviar um pouco a angústia sem remédios dos parentes das vítimas. Fora isso, qualquer ato que busque usar fatos do passado contra ex-militantes de esquerda tem todas as características de perseguição política. Isso é típico das ditaduras.