A capitã do navio de africanos expôs o risco político do radicalismo xenófobo de Matteo Salvini
O retumbante Matteo Salvini, ministro do Interior da Itália, aprendeu uma lição. Quando o barco Sea Watch 3 entrou à força no porto de Lampedusa com 40 refugiados líbios, ele anunciou a prisão da capitã Carola Rackete com a teatralidade do radicalismo fanfarrão. A entrada do navio no porto teria sido um “ato de guerra” praticado por uma embarcação “pirata”.
Os 40 africanos que haviam sido resgatados pelo Sea Watch em alto-mar seriam mais um lote de desesperados e Carola Rackete, mais uma ativista dessas ONGs que azucrinam os poderes estabelecidos. Nunca se sabe quando o vento da história sopra em cima de um poderoso da ocasião. O vento soprou em cima de Salvini.
O Sea Watch tem a bandeira holandesa e Carola Rackete é alemã. O ministro das Relações Exteriores de Berlim, Heiko Maas, pediu a libertação da marinheira: “Quem salva vidas não pode ser chamado de criminoso” —exatamente o que achou a juíza que ordenou sua soltura nesta terça (2). O governo da França classificou o ato de “histeria” e o presidente italiano recomendou que se baixasse a bola. Duas vaquinhas internacionais arrecadaram mais de 1 milhão de euros para ajudar a ONG do Sea Watch.
Os refugiados não precisam ficar na Itália e não era razoável que 40 pessoas ficassem à deriva no Mediterrâneo. As leis italianas pretendem conter o êxodo de refugiados africanos, na defesa dos interesses do país, e quando a marinheira desceu no cais de Lampedusa, populares chamaram-na de “vendida”. Um deles gritou que ela devia ser estuprada pelos negros que transportou. Coisa dos tempos de hoje. No século passado os europeus fizeram coisas piores e em 1944 o governo italiano colou cartazes mostrando um soldado simiesco com o uniforme americano saqueando obras de arte. Deixar barcos em alto mar, chamando os tripulantes de piratas metidos em atos de guerra, é um triste retorno, e Salvini percorreu-o.
Isso era o que acontecia em 1947. O governo inglês capturava navios com judeus que seguiam para a Palestina. Depois, quando a saga do navio Exodus (com Paul Newman no papel principal) tornou-se um marco na vida de Israel, tiraram o corpo fora.
Por trás do Sea Watch e das ONGs há uma rede de apoios e cumplicidades. A tripulação do barco tinha jovens franceses, holandeses e espanhóis. Nada de novo: havia uma rede clandestina e multinacional por trás de navios como o Exodus. (Nela militava Samy Cohn, que se tornou banqueiro e morreu no Brasil.) Há diferenças entre os refugiados judeus de 1947 querendo ir para a Terra Santa e os africanos de hoje querendo entrar na Europa, mas o ministro alemão que defendeu a libertação de Carola Rackete foi ao essencial: “Quem salva vidas não pode ser chamado de criminoso”. Os líbios do Sea Watch poderiam ter morrido no Mediterrâneo e, segundo a capitã, ameaçavam jogar-se ao mar, como faziam os africanos dos navios negreiros do século 19. Calcula-se que neste ano 600 africanos afogaram-se no Mediterrâneo.
As falas de Salvini, repudiadas na terça pela juíza, foram uma fanfarronice demagógica. O ministro tinha motivos para saber que a marinheira, uma “fora da lei”, segundo ele, não ficaria muito tempo presa. Sendo alemã, poderia ser deportada. Sabia também que os africanos não ficarão em Lampedusa. Jogou para sua plateia, mas subestimou a reação de outros países e das próprias instituições italianas. Nos dias de hoje, isso é comum.
*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralada”.