Executivo precisa de grande habilidade para conduzir a sua agenda legislativa
“O PRINCIPAL, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros (começos), foi estabelecer alguma ordem na administração.” Assim escreveu Graciliano Ramos em relatório de gestão da prefeitura de Palmeira dos Índios endereçado ao governo de Alagoas. A palavra principal está grafada em maiúsculas no original. O eventual leitor perguntará: mas Graciliano numa hora destas? E logo sobre um assunto tão árido, uma citação velha de 90 anos? São várias as razões que me fazem começar puxando esse fio, que, creio, tem muito que ver com nosso presente – e com nosso futuro.
Primeiro, porque o Brasil tem 5.570 prefeitos, que estarão, ao longo dos próximos 18 meses, a preocupar-se não só com a administração de suas cidades e com seus vereadores, como também com sua reeleição ou sucessão em outubro de 2020. Estarão atentos à relação com os respectivos governadores e com o que acontece em Brasília e no resto do Brasil (o que não é exatamente a mesma coisa). Impossível dizer quantos desses prefeitos – presentes e futuros – terão o estilo objetivo, seco, direto ao ponto de Graciliano (seus dois relatórios são imperdíveis). Mas para a grande maioria o principal problema, de que depende a solução de todos os outros, é a extensão em que conseguirão “estabelecer alguma ordem” nas suas respectivas administrações.
Segundo, porque há também 27 governadores que entram agora no quarto mês de seus mandatos e estarão chegando quase à metade deles em 18 meses mais, e com as mesmas preocupações dos prefeitos de hoje, de olhos postos em outubro de 2022. Para a esmagadora maioria também vale a observação inicial de Graciliano. Alguns Estados estão à beira da insolvência, resultado da falta de “alguma ordem” na administração passada de dívidas, derivadas, por sua vez, do excesso de crescimento de gastos sobre o crescimento de receitas. Em alguns casos, mais preocupantes, da transformação de receitas transitórias em gastos permanentes e crescentes – em particular com as duas rubricas mais importantes: pessoal e, crescentemente, inativos e pensionistas. Vários governadores em início de mandato são, basicamente, gerentes de folhas de pagamento, que em alguns casos excedem 70% de sua receita corrente líquida.
Penoso e aborrecido como possa parecer, esse é o principal problema para a maioria dos gestores públicos. Um problema que exige conhecimento do nível, composição e eficiência de suas despesas e receitas, presentes e futuras. Exige, em particular, cercar-se de pessoas qualificadas e dotadas de capacidade de execução. Disso depende não só o controle da trajetória de sua dívida, como também, e principalmente, a qualidade e quantidade dos serviços públicos que têm a obrigação de prestar às respectivas populações. Alguém dirá – e não sem razão – que por mais que Estados e municípios possam fazer nesse sentido, estarão sempre afetados positiva ou negativamente pelo contexto mais amplo do desempenho da economia do País; que, por sua vez, é fortemente influenciado pelas políticas do Executivo federal, deliberações do Congresso Nacional, decisões do Judiciário – e pelo grau de funcionalidade das relações entre os Poderes, em particular entre Executivo e Legislativo.
Esse é o terceiro ponto. O novo governo está no poder há cem dias. O novo Congresso assumiu há 70 dias. Muitos dizem, e dirão por algum tempo ainda: “É muito cedo, as coisas vão se acomodando e o Executivo acabará por formar sua base de apoio no Congresso, suficiente para a aprovação, em prazo razoável, de uma ampla agenda legislativa”. O tempo dirá, mas este terceiro aspecto envolve uma pergunta de importância crucial: a que responde cada congressista, num Parlamento repleto de novatos, em que nenhum partido tem mais que 11% (Câmara) ou 15% (Senado) dos votos?
A quatro fatores, é a resposta que arrisco esboçar. 1) À família nuclear imediata e estendida de cada congressista, que começa por pais, mães e filhos e alcança compadres, agregados e amigos; quem já viveu em Brasília sabe da importância desses vínculos, dada a quantidade de empregados no setor público. Posturas e votos sobre a reforma da Previdência, por exemplo, sempre foram, e agora serão mais ainda, afetados por estes vínculos. 2) A seu eleitorado potencial, sua base eleitoral no respectivo Estado, região e município, a ser atendida por emendas e obras que consiga; e, para muitos, às suas alianças corporativistas de caráter nacional, que nunca devem ser subestimadas. 3) Ao que percebem como o cambiante “sentimento geral” da opinião pública mais ampla, tal como refletida nas mídias – rádio, televisão, jornais, revistas e, cada vez mais, redes sociais. 4) Por último, mas não menos importante, ao que percebem como o grau de empenho e convicção do Executivo federal, dos ministros e da respectiva capacidade de articulação, convencimento e conhecimento do tema em deliberação, inclusive, e muito importante, do presidente da República.
Cada deputado e cada senador tem antenas muito sensíveis para os pontos acima mencionados, todos sentem que têm legitimidade: afinal, seus mandatos também emergem das escolhas do eleitorado. Julgam que o Legislativo sempre pode, e deve, “aperfeiçoar” os projetos encaminhados pelo Executivo, pois a Constituição assegura a independência dos Poderes. Se os partidos são fracos, o Congresso, em seu conjunto, quando quer, e puder, é forte. O Executivo precisa de grande habilidade e lideranças experientes para conduzir sua agenda legislativa, em particular quando esta envolve mudanças constitucionais. A eventual percepção por parte do Congresso de que o Executivo não está coeso e de que o próprio presidente não está convencido dos rumos pode ser algo nefasto nos meses que faltam deste crucial ano de 2019, afetando negativamente as expectativas de retomada do investimento e do crescimento do País. É muito sério o que está em jogo nestes “começos”.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC.