Mudar de status na OMC pode repercutir em fóruns climáticos
Como se divide a conta do clima entre os países? Como se reparte o espaço que resta na atmosfera para emissões de gases-estufa de modo que os impactos do aquecimento global não sejam tão desastrosos? Como se estabelecem critérios justos para que nações em desenvolvimento possam crescer sem comprometer a vida na Terra? Esta equação incômoda ronda as negociações climáticas há anos. Trata-se de compartilhar o orçamento de carbono na atmosfera para que o aquecimento da temperatura não ultrapasse 2°C até 2100 – para ficar em 1,5° C os cálculos são muito mais drásticos. Existem várias contas feitas por pesquisadores de diferentes lugares com diversos critérios. O único ponto em comum é que governo algum gosta de falar neste assunto.
Governos mencionam datas e objetivos para reduzir suas emissões, mas não o caminho para alcançar o compromisso. Fala-se em “descarbonizar a economia até 2050”, por exemplo, mas a trilha até lá é indefinida. Uma aposta é imaginar que novas tecnologias irão surgir e resolver o problema do carbono – costuma ser o jeito de pensar dos Estados Unidos. Outra forma é estimular produção e consumo sustentáveis, ou consumir menos – estratégia que tem mais eco entre europeus. Outra via é entender o que dizem os cientistas: limitar o aquecimento em 2°C significa que os países podem emitir, juntos, cerca de mil gigatoneladas de CO2 até 2100, a começar em 2014. Estourar a barreira causará impactos maiores e piores. Então, é preciso definir quem pode emitir e quanto. É aí que acaba a ciência e começa a política.
“É como se todos os condôminos de um prédio tivessem que dividir o volume da caixa d’água durante uma crise hídrica”, explica o pesquisador Oswaldo Lucon. Ele introduziu o assunto em três páginas do “Global Environment Outlook”, o GEO 6, a mais completa radiografia sobre o estado do ambiente global, desenvolvida pela ONU Meio Ambiente durante os últimos cinco anos. O relatório foi lançado no mês passado durante reunião em Nairóbi, no Quênia.
Na divisão dessa conta, cada um puxa a sardinha para o seu lado, mesmo que ninguém goste do peixe. Chineses, por óbvio, preferem o critério que divide as emissões per capita. O Brasil sempre defendeu a responsabilidade histórica, lembrando que quem causou o problema foram os países ricos em seu processo de industrialização e, portanto, têm de fazer cortes maiores nas emissões e pagar para que os outros também se desenvolvam. Os indianos pensam até nos direitos de quem ainda não nasceu e querem garantir que eles possam emitir o mesmo tanto que os americanos emitem hoje. As reivindicações são legítimas, mas não há Terra que aguente tal pressão nos recursos naturais sem aquecer a níveis que coloquem tudo a perder.
Voltando ao exemplo da caixa d’água, os americanos se justificam dizendo “devo, não nego, mas não tenho como pagar. Não dá para mudar a matriz de produção e consumo de uma hora para a outra. Não podemos parar de tomar banho”, segue Lucon, assessor da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, professor colaborador da Universidade de São Paulo e membro do IPCC, o painel da ONU que reúne cientistas climáticos.
Os europeus, a bem dizer, já dividem sua conta domesticamente – têm meta climática única e compartilham esforços entre si -, mas não querem ficar neste jogo sozinhos. No Brasil, técnicos do governo costumam dizer que o debate em torno ao orçamento de carbono é colonialista. Argumentam que os países ricos usaram toda a capacidade atmosférica e agora que a coisa complicou querem restringir os outros.
Os países já reconheceram formalmente as cerca de mil gigatoneladas de CO2 ao aprovar o último relatório do IPCC, em 2014. “Agora precisam reconhecer que isso deve ser repartido. Quanto cabe a cada um é uma etapa seguinte, tão complexa cientificamente quanto na mesa de negociação”, diz Lucon. “É algo difícil, mas necessário. Ou a janela de oportunidade para manter o limite dos 2°C estará perdida.”
As três páginas incluídas no GEO 6 introduzem a discussão pela primeira vez em um documento de prestígio internacional. Uma das ideias expressas ali é a da “convergência”. Todos os cidadãos do planeta emitiriam a mesma quantidade de gases-estufa em 2035 – os de países ricos teriam que emitir bem menos que hoje, e os dos em desenvolvimento emitiriam mais do que os níveis atuais. Daí em diante as emissões totais convergeriam até chegar a zero em 2070. O exemplo escolhido por Lucon é apenas um ponto de partida para a discussão. Não está escrito em pedra. “É só para reconhecer que o jeito que estamos consumindo e produzindo hoje é insustentável. Vamos ter que resolver.”
Este debate se torna particularmente importante para os interesses brasileiros agora. São ainda indefinidos os desdobramentos da decisão do governo de Jair Bolsonaro de fazer com que o Brasil mude de status de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio. Em março, nos EUA, o governo conseguiu o apoio de Donald Trump para que o Brasil integre a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, a OCDE. Mas, para entrar no clube dos ricos, terá que abrir mão do tratamento diferenciado na OMC.
Se este conceito transbordar para as rodadas climáticas, posições históricas defendidas pelos diplomatas do Itamaraty poderão ser questionadas. O Brasil é líder tradicional no grupo dos países em desenvolvimento, o chamado G-77 – terá que abandonar esta turma? Os negociadores brasileiros batem forte para que os recursos financeiros que vão pavimentar a transição das economias ao baixo carbono fluam dos países ricos aos mais pobres. O que acontece diante desta nova composição, se o Brasil entrar na OCDE? Como ficará o país se for identificado como de maior renda e passar a receber menos empréstimos do Banco Mundial? Os compromissos climáticos dos ricos para os pobres – US$ 100 bilhões ao ano a partir de 2020 – deixarão de beneficiar o Brasil? Os recursos do Fundo Verde do Clima vão passar ao longe? Não há respostas ainda para estas questões, mas é bom saber que vão levantar a lebre.