Lucro contábil do BC e devolução do BNDES salvam o governo
Contrariando todas as expectativas e depois da celeuma criada no ano passado, o governo vai cumprir neste ano, com sobra, a chamada “regra de ouro” das finanças públicas. Tudo indica que haverá um substancial saldo positivo. Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro encaminhou ao Congresso, na semana passada, um projeto de lei pedindo autorização para emitir R$ 248,9 bilhões em títulos públicos para cumprir a regra.
A reviravolta na expectativa do governo foi provocada pelos mesmos fatores que permitiram o cumprimento da “regra de ouro” nos últimos anos: a transferência para o Tesouro do lucro contábil do Banco Central nas operações com as reservas cambiais e o pagamento antecipado dos empréstimos que o BNDES recebeu do Tesouro.
O lucro do BC nas operações com as reservas é contábil porque não resulta de venda de moeda estrangeira, mas apenas da desvalorização do real frente ao dólar. Como as reservas em moedas estrangeiras são contabilizadas em reais, toda vez que a moeda brasileira sofre uma desvalorização em relação ao dólar, o valor em reais da reserva aumenta. O aumento é considerado “lucro” e transferido em dinheiro ao Tesouro.
A “regra de ouro” proíbe o governo de se endividar em valor superior à despesa de capital (investimentos, inversões financeiras e amortizações de débitos). Ou seja, a regra busca evitar que o Estado aumente sua dívida para pagar despesas correntes.
O Orçamento de 2019 foi elaborado com a previsão de uma insuficiência de R$ 248,9 bilhões para cumprir a “regra de ouro”. Ou seja, a proposta orçamentária não cumpria a regra”, pois as operações de crédito neste ano iriam superar em R$ 248,9 bilhões as despesas de capital, com o objetivo de pagar despesas correntes.
A solução encontrada foi incluir na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) um artigo permitindo que o Orçamento fosse elaborado com despesas correntes condicionadas a uma autorização futura do Congresso para a emissão de R$ 248,9 bilhões em títulos públicos. O entendimento do governo foi que o inciso III do artigo 167 prevê essa saída desde que o projeto de lei seja aprovado pela maioria absoluta do Senado e da Câmara. O Congresso concordou com essa interpretação.
O projeto de lei enviado por Bolsonaro na semana passada cumpriu a determinação da lei orçamentária. A questão agora é que não há mais necessidade da emissão dos títulos porque não existirá insuficiência para cumprir a “regra de ouro”.
O imbróglio em que o governo se meteu é que despesas com benefícios previdenciários e com o programa Bolsa Família neste ano estão condicionadas à aprovação da emissão dos títulos. Assim, do ponto de vista da contabilidade pública, as despesas só poderão ser executadas se a operação de crédito for aprovada, de acordo com especialistas consultados pelo Valor. Dito de forma direta, o Congresso terá que aprovar a emissão de títulos se quiser que um montante considerável de despesas na área social (R$ 248,9 bilhões) seja executado.
Ao divulgar o seu resultado de janeiro, o Tesouro Nacional estimou a insuficiência da “regra de ouro” neste ano um pouco menor do que está previsto no Orçamento: em R$ 247,8 bilhões. A insuficiência de R$ 247,8 bilhões será resolvida com o uso de R$ 141,2 bilhões do resultado do Banco Central registrado no primeiro semestre de 2018. Além disso, o governo vai utilizar também o lucro de R$ 25 bilhões obtido pelo BC no segundo semestre do ano passado. Com isso, a insuficiência cairia para R$ 81,6 bilhões (R$ 247,8 bilhões menos R$ 141,2 bilhões menos R$ 25 bilhões).
O governo também decidiu instruir o BNDES a antecipar o pagamento de mais R$ 100 bilhões, além dos R$ 26 bilhões negociados anteriormente, dos créditos que o banco obteve junto ao Tesouro. Com isso, a insuficiência seria transformada em um saldo positivo de R$ 18,4 bilhões. (R$ 100 bilhões menos R$ 81,6 bilhões).
A conta não acaba aí. O ministro da Economia, Paulo Guedes, está decidido a realizar o megaleilão do excedente de petróleo na área da cessão onerosa da Petrobras. A receita do leilão poderá superar R$ 120 bilhões, de acordo com avaliações feitas pelo próprio governo. Depois de dividir parte dos recursos com os Estados e municípios e pagar o devido à Petrobras, no contexto da revisão do contrato da cessão onerosa, é possível que a União fique com algo em torno de R$ 60 bilhões.
O dinheiro do leilão reduzirá o déficit primário do governo central (Tesouro, Previdência e Banco Central) neste ano, ajudando a aumentar ainda mais o saldo positivo da “regra de ouro”. Além disso, em meados do ano passado, o governo alterou as regras de inscrição e cancelamento de restos a pagar. Com as mudanças, o Tesouro estimou que seria possível cancelar até R$ 42,7 bilhões de restos a pagar não processados no fim deste ano. O cancelamento também elevará o saldo da “regra de ouro”.
Resolvido o problema deste ano, ele permanecerá, no entanto, nos próximos. Principalmente porque a antecipação do pagamento dos empréstimos pelo BNDES não vai durar muito. E a transferência do lucro contábil do BC ao Tesouro deverá acabar neste ano.
Parado na CCJ
Está parado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados o projeto de lei 9.283/2017, que muda a relação financeira entre o Tesouro e o Banco Central. Aprovado em 20 de dezembro do ano passado, o projeto aguarda apenas que a CCJC elabore a sua redação final.
A paralisia é explicada por causa de uma emenda de redação que foi feita ao projeto. O texto original não especificava o período de apuração do balanço do BC. A emenda determinou que o período de apuração seja semestral.
Vários consultores da Câmara entendem que a emenda mudou o conteúdo do projeto, pois o período de apuração do balanço do BC tem variado ao longo do tempo (anual e semestral) e, portanto, deve ser definido em lei. Outros entendem que, mesmo que a emenda tenha alterado o conteúdo, já é matéria vencida.
O projeto 9.283/2017 determina que o lucro do BC com a administração das reservas e nas operações de swap cambial não será mais transferido ao Tesouro, mas mantido em uma “reserva de resultado” no próprio balanço da instituição. A “reserva” será usada apenas para cobrir os prejuízos do Banco Central.