Filhos de Bolsonaro fizeram as perguntas erradas diante da apresentação dos suspeitos do assassinato de Marielle Franco
“Quem era Marielle?” A pergunta é do deputado Eduardo Bolsonaro. “Estou falando com todo o respeito. Ninguém conhecia Marielle Franco antes de ela ser assassinada”. O parlamentar tem que redobrar seu respeito. Marielle era um fenômeno da política. Mulher, negra e tendo crescido na Maré, sem qualquer parente na política, de um partido pequeno, fez uma campanha sem recursos e que a consagrou com mais de 46 mil votos. Ela foi votada principalmente nas áreas pobres da cidade.
Quem era Marielle? Era uma política despontando com uma força de liderança enorme. Na democracia representativa, os representantes são o esteio das instituições e por isso vivem sob constante escrutínio da população. Marielle encarnava exatamente os que mais precisam ter voz num país desigual e cheio de injustiças como o Brasil, as mulheres, os negros, os pobres, os que são perseguidos por sua orientação sexual. Trabalhou para construir essa liderança, por 10 anos foi funcionária de uma casa legislativa, acompanhava o chefe, deputado Marcelo Freixo, numa CPI árdua, a das milícias, problema que ou é enfrentado ou o Rio naufragará na barbárie. Os chefes da milícia são, como ninguém desconhece, ex-integrantes das forças de segurança do Estado. Atuam numa zona de sombra perigosa, afinal o Estado treina e arma seus agentes para que protejam a população e não para prepará-los para ocupar parte do território, sequestrar populações, ameaçá-las e matar os que considera que são seus inimigos.
Segundo o deputado Bolsonaro, ninguém sabia quem era Marielle Franco, antes do crime. Seus eleitores sabiam, a população que foi espontaneamente às ruas nas horas seguintes para chorar sua morte sabia. E infelizmente sabiam também os que a mataram e os que tramaram tão minuciosamente como executar o crime. Se não era ninguém, como sugere o deputado Bolsonaro, porque o policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Queiroz programaram com tanta frieza, a esperaram com tanta determinação, planejaram com tantas minúcias o seu assassinato?
Ela era uma força emergente que já no seu primeiro mandato ameaçava e incomodava. O país precisa saber tudo sobre esse crime porque ele é um atentado à democracia. O Estado Democrático de Direito não pode conviver com o fato de que um representante eleito foi assassinado pelas ideias que tinha e defendia. Isso ocorre nas ditaduras, que se instalam na marginalidade, na ausência da lei. Mas a democracia não pode aceitar o silêncio, as respostas incompletas ou as interpretações enviesadas sobre os motivos que levaram ao crime. Como disse Merval Pereira ontem neste jornal, é “improvável” a tese de que foi por ódio que Ronnie Lessa a matou. Um ódio dele, só dele, e não a ponta executora de um plano para eliminar uma voz que ficava mais alta a cada dia.
O senador Flávio Bolsonaro fez também uma pergunta, diante dos fatos expostos pela Delegacia de Homicídios ao prender os dois suspeitos. “Agora virou fator importante para o crime o cara coincidentemente morar no condomínio dele (de Jair Bolsonaro)?” De novo, há um erro de olhar. O que ele e os órgãos de segurança e todos os envolvidos na proteção do presidente deveriam se perguntar é como ninguém soube que o presidente morava tão perto de alguém que tinha ligações com criminosos, era um matador de aluguel e possuía arsenal onde havia 117 fuzis. Afinal, Bolsonaro foi esfaqueado durante a campanha. E esse foi o argumento para se fazer uma blindagem tão grande na posse que impôs aos jornalistas constrangimentos inéditos. Mas, depois da posse, quando vinha ao Rio, ele ficava numa extrema proximidade de um matador de aluguel.
Há distorção da realidade nas perguntas feitas pelos dois filhos do presidente diante da apresentação pela polícia dos suspeitos pela morte de Marielle. A pergunta exata é saber quem mandou matar uma representante do povo do Rio na Câmara Municipal. O esclarecimento do crime é fundamental para dar respostas à família, aos que amavam Marielle, aos que se sentiam representados por ela, aos que vislumbravam o seu futuro. Mas é também a única forma de fortalecer a democracia. A cada dia — e já são 365 deles — em que não se sabe a motivação e os mandantes desta conspiração e morte, maior é o risco que corre a democracia brasileira.