Está a nossa democracia consolidada para resistir a aventuras populistas e bonapartistas?
Acusada desde sua promulgação de conter altíssimo número de artigos, a Constituição brasileira não é extensa por incúria de seus autores. Escrita depois de 20 anos de uma ditadura militar, é compreensível que ela fosse bastante generosa em matéria de direitos individuais e sociais, a ponto de um ministro do STF ter afirmado que a Carta “só não traz a pessoa amada em três dias; fora isso, quase tudo está lá”.
A repulsa à ditadura também explica por que os constituintes recorreram à figura jurídica das cláusulas pétreas, para preservar liberdades públicas contra a aprovação de emendas constitucionais que tentassem limitá-las. Mas com isso impuseram suas concepções de poder às gerações futuras, suprimindo-lhes a prerrogativa de definir os direitos e o regime político que poderiam considerar adequados. Pelo mesmo motivo, os constituintes consagraram, ainda, um modelo de Estado e um padrão de regulação econômica que havia sido adotado em larga escala nas décadas seguintes ao pós-guerra.
Na época da Constituinte, porém, esse modelo e esse padrão já estavam em declínio, por causa da transterritorialização dos mercados, que privou os Estados de parte de suas funções legislativas e levou a um crescente policentrismo decisório no plano mundial. Para se adaptarem a essas mudanças, entre 1989 e 1999 dois terços dos países vinculados à ONU reformaram suas Constituições.
Com isso, o Brasil acabou ficando com um padrão de governabilidade travado, quando comparado com o padrão de outros países emergentes. Quanto mais extensa é uma Constituição, mais reduzidas são as esferas de decisão das maiorias parlamentares e da discricionariedade dos dirigentes do Executivo e maior é a tendência de judicialização das políticas públicas.
Sob a justificativa de deter a judicialização e destravar a governabilidade, a Constituição tem sido objeto de várias propostas de enxugamento, mediante a transferência de matérias por ela regulada para a legislação ordinária. Durante a campanha eleitoral, o vice do candidato eleito chegou a propor uma Carta escrita por “notáveis” e submetida a um plebiscito. Tolices à parte, as críticas suscitam questões importantes.
Uma diz respeito ao número de normas constitucionais que vão além da definição das regras do jogo, tratando, por exemplo, de políticas púbicas. Discutida por Cláudio Couto e Rogério Arantes em instigante artigo, a questão merece destaque porque, como uma proposta de emenda constitucional exige duas votações na Câmara e outras duas no Senado, com a aprovação de três quintos dos parlamentares em cada votação, os constituintes acabaram amarrando as gerações futuras a decisões não propriamente constitucionais, mas de interesse de parlamentares e corporações.
No caso específico da implementação e execução de políticas públicas, esse quórum é elevado e o processo de emendamento é lento ante a velocidade em que hoje se se sucedem os acontecimentos econômicos num mundo em que decisões são tomadas em tempo real. Além do mais, esse processo exige do Executivo capacidade de articulação parlamentar e eleva os custos políticos para a construção de coalizões, o que leva a concessões espúrias e irracionais.
Nas contas de Couto e Arantes, o número de artigos da Constituição que tratam de políticas públicas chega a 30,7% do total de dispositivos – é a maior proporção de todas as Constituições brasileiras. Quando uma Constituição contém muitos dispositivos sobre políticas públicas, ela “atrai para si a política governamental e a política cotidiana, já que seus dispositivos terão grande sobreposição com as questões que são objeto da disputa política entre os partidos, entre o governo e a oposição e entre os diversos grupos de interesse presentes na sociedade e no Estado”, afirmam eles.
Outra questão diz respeito aos efeitos de uma reforma constitucional. Evidentemente, toda Constituição tem, em face das transformações econômicas, sociais e culturais, de estar aberta a revisões. A ideia de que seja modificável não colide com sua vocação para a estabilidade – ao contrário, é condição para que o texto constitucional possa durar, sem perder efetividade.
Quando uma Carta não consegue combinar estabilidade e flexibilidade, ela tende a enrijecer, desconectando-se da realidade, ou a ser excessivamente flexível, gerando insegurança jurídica. Em 30 anos a Carta foi emendada 105 vezes. Desse total, 54,5% das emendas incorporaram novas normas à Constituição e só 2,6% revogaram normas originais. Ou seja, quase dois terços das emendas ampliaram um texto que já nasceu extenso.
Mais importante ainda, esse crescimento se deu basicamente nas matérias que envolvem políticas públicas, e não nas matérias relativas às instituições e funções de garantia do Estado. A dúvida levantada por Couto e Arantes em seu artigo, escrito antes das eleições, era saber se o candidato Jair Bolsonaro, com seu discurso flagrantemente antissistema, tinha noção do que falava sobre reforma constitucional.
Ou seja, a dúvida era saber se seu discurso reformista se circunscrevia apenas às políticas públicas constitucionalizadas, propondo sua revogação para assegurar agilidade à gestão governamental, ou se também envolvia alterações nas regras do jogo político e supressão de direitos. A literatura comparada revela que Constituições extensas e bastante modificadas por emendas tendem a durar. Também mostra que sua extensão tem que ver mais com questões institucionais do que de políticas públicas.
Pelo que disse antes das eleições, classificando certos dispositivos constitucionais como “amarras ideológicas”, o novo presidente parece que não se contentará apenas com reformas nos dispositivos relativos a políticas públicas. Por isso o importante não é somente saber se a Constituição continuará mantendo a resiliência demonstrada em 30 anos de vigência, mas, também, se a democracia brasileira está consolidada para resistir a aventuras populistas e bonapartistas.
*Professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas