Brumadinho é um espanto. Uma Guernica mineral. Um desalento. Porque não é um só. Antes veio Mariana. Matou um rio, 19 humanos, fraturou a cultura ribeirinha do povo krenak das margens do Rio Doce, destruiu o modo de vida dos pescadores. Soterrou patrimônio natural, cultural, modos de vida e de sobrevivência. Antes ainda que as feridas profundas de Mariana se fechassem e sem reparação à altura das perdas e danos, veio o desastre da Mina Córrego do Feijão. Que vergonha e que indignação!
Mariana e Brumadinho não estão sós. Nem são apenas quatro, como os cavaleiros do Apocalipse. São quatrocentas. Ou mais. Uma delas, dependurada sobre a joia artística que é Congonhas, em Minas Gerais, ameaça com 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos, de lama fatal, um extraordinário patrimônio artístico-cultural e a vida inestimável de milhares de pessoas. Ali, a Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos coroa o mais espetacular complexo arquitetônico e estatuário do Brasil. Não é exagero. O conjunto paisagístico e artístico representado pelo santuário não tem paralelo no país.
Abaixo da basílica, sob o olhar dos 12 profetas esculpidos pelo gênio Aleijadinho, coreograficamente distribuídos pelo adro, derrama-se a via-sacra, também do artista, em capelas nas quais as cenas talhadas em madeira em tamanho natural encantam e enternecem. Além da beleza das esculturas, os profetas do adro da igreja e as cenas da Paixão de Cristo nas capelas revelam uma cenografia deliberada e expressiva. É o principal legado escultórico de Aleijadinho, tombado e abandonado. A filha de um maestro amigo meu, ao vê-las aos 8 anos de idade, exclamou: “Estão vivas, papai!”. E estão, mas por quanto tempo?
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Esse santuário artístico, que contou com os gênios de Aleijadinho e outros grandes artistas do Brasil colonial, como o insuperável Mestre Ataíde, Francisco de Lima Cerqueira e João Nepomuceno Correia e Castro, está emoldurado por um cenário natural espetacular e cercado por sobrados que não se fazem mais. Sobre esse precioso bem coletivo está uma barragem como essas que se romperam, porém ainda maior. A Casa de Pedra contém 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos, de lama tóxica, prontos para soterrar o legado de Aleijadinho, eliminando-o do mundo e da memória. Em Mariana, foram 50 milhões; em Brumadinho, 12 milhões.
Brumadinho pode ter matado mais de duas centenas de seres humanos. Liquidou negócios e criações. Está matando o Rio Paraopeba. O Paraopeba é um rio sertanejo como eu e, enlameado, caminha para minhas paragens curvelanas. Pode enlamear parte do grande sertão e das veredas de Guimarães Rosa, tirando-lhes até o sentido metafísico. O Doce, rio serrano, tem uma de suas nascentes ao lado, Barbacena, cidade de meu pai, de meu irmão e de minha infância. Conheço as vítimas, cresci com elas. E como dói.
Em São Joaquim das Bicas, os pataxós da aldeia Hã-hã-hãe foram evacuados. Estão ameaçados por Brumadinho do mesmo destino dos krenak do Rio Doce. Hoje, nas margens do rio morto, os velhos krenak contam para os jovens sobre os animais e a vida ribeirinha perdidos na lama, para que mantenham suas referências, agora meras abstrações. O canal Futura tem uma série de documentários pungentes sobre o drama dos krenak do Doce morto.
Essas tragédias não foram incidentais. Elas tiveram causas e autores humanos. O autor principal chama-se Vale. Uma empresa que se apresenta como verde, mas esse verde é camuflagem de predador. Como disse Drummond, o vale é doce, a Vale, amarga. O autor coadjuvante chama-se Estado. Ambos, empresa e Estado, têm uma característica genética comum: suas ações dependem das escolhas de seus gestores, a diretoria, num caso, o governo, no outro. Escreveram essa tragédia a várias mãos, a empresa, suas subsidiárias, as consultoras, os governos estadual e federal, com más decisões, colocando a taxa de lucro acima do valor das vidas humanas e do patrimônio cultural, ambiental e paisagístico.
Há um outro autor político. O Congresso, que se rendeu ao lobby das mineradoras e seus dinheiros de campanha, afrouxou a fiscalização e engavetou as providências legais apresentadas após Mariana. O ex-deputado (deixou a Câmara demitido pelos eleitores) Leonardo Quintão (MDB-MG), relator do projeto que criava novas regras para a mineração, reescreveu-o à imagem e semelhança dos desejos do lobby mineral. Agora vai para o novo governo, manter-se ativo no Gabinete Civil. Brasil surreal, onde tudo muda para ficar na mesma. Exemplos de irresponsabilidade política e corporativa. Deputados deveriam estar a cuidar do bem público e não dos vícios privados. As mineradoras deveriam estar a corrigir seus vícios e buscando novos modos, para minimizar os riscos que impõem à sociedade, à qual nada retornam, se não magros royalties e buracos, quando não cadáveres e desolação.
Falou-se muito, e nem sempre com precisão, sobre risco. No primeiro dia do curso que costumava oferecer sobre risco político, explicava a meus alunos alguns conceitos básicos, igualdades e diferenças. Começava por dizer que a noção de risco é a mesma, na engenharia, no ambiente, na economia e na política. Os dados e os parâmetros é que se alteram. Usava o quadrinho abaixo para ilustrar essa igualdade e distinguir o que faz parte da matriz de riscos e o que não faz.
Risco
É simples. O conceito básico de risco – ele pode ser sofisticado e ficar mais complexo a partir daí – nasce da interseção entre a probabilidade de ocorrência de um evento e a severidade do dano que pode causar. O quadrante inferior esquerdo – baixa probabilidade e baixo dano – não requer muita atenção. O quadrante superior esquerdo – alta probabilidade e baixo dano – requer providências regulares. O quadrante superior direito – alta probabilidade e dano severo – não faz parte da matriz de risco. Primeiro, antes de uma situação chegar ali, uma empresa responsável já teria tomado providências preventivas, para evitar sua progressão até essa condição quase irremediável. Caso o tivesse feito, não estaria enfrentando um risco, que supõe incerteza, mas um quadro a exigir providências imediatas e radicais. O quadrante inferior direito é o que caracteriza o verdadeiro risco – baixa probabilidade e dano severo — que impõe vigilância permanente.Continua depois da publicidade
Se imaginamos que cada evento pode ser situado em pontos distintos dentro de cada quadrado, indicando variações na probabilidade de ocorrência e severidade do dano, teremos uma escala contínua que irá da probabilidade muito baixa até muito alta e dano de baixa severidade até dano de severidade máxima. As barragens de alteamento a montante, como as de Mariana e Brumadinho, jamais estariam na categoria de baixo risco. A probabilidade de rompimento vai aumentando a cada alçamento, que reduz a resistência estrutural original. Portando, nos dois casos, exigiam monitoramento 24/24, isto é, 24 horas por dia, de segunda a domingo, de 1º de janeiro a 31 de dezembro, com sensores e instrumentação adequados e em permanente manutenção, além de verificações de campo diárias.
O laudo no qual se ampara a Vale para se dar ao direito, que não tem, de dizer que foi pega de surpresa pelo rompimento de Brumadinho é um exemplo de como a atividade tem regulação inadequada. Uma barragem de rejeitos fluidos é dinâmica. O fato de estar estável em setembro de 2018, nada diz sobre sua estabilidade em janeiro de 2019. Mesmo que estivesse desativada – a empresa precisa provar que não aumentou o volume de rejeito desde de 2014 porque em Mariana houve informação inverídica sobre isso –, a chuva, a acomodação progressiva do rejeito ainda liquefeito e sua consolidação progressiva alteram os parâmetros determinantes da estabilidade. Só o monitoramento 24/24 e a inspeção diária podem determinar a estabilidade a cada momento. Barragens não rompem de supetão, avisam. Se não souberam identificar esses avisos, além de negligentes eram incompetentes.
Mais ainda, a trajetória de um possível rompimento deveria ser objeto de simulações, para impedir construções a montante, e, até mesmo, a implantação da barragem. Para toda a área de impacto definida pelos trajetos possíveis da lama, planos de contingência deveriam prever a evacuação, medidas de contenção e proteção. Há áreas em que a remoção é possível e outras, em que ela não é. São investimentos que as empresas evitam, para preservar sua margem de lucros e controlar custos. Como resultado, aumentam os custos públicos. A velha socialização das perdas e privatização dos lucros. Com o progresso rumo a novos materiais de baixo impacto ambiental e climático, o preço dos produtos que vão ficando obsoletos cai e as empresas resistem ainda mais a fazer investimentos de precaução. É ainda pior, porque tentam compensar a perda de valor do produto com a ampliação do volume de venda, aumentando a pressão sobre as barragens, reduzindo as medidas de cautela. Por isso os vícios privados jamais se tornam virtudes públicas. Nessas atividades de risco, não se pode abrir mão da regulação estatal nem terceirizar a palavra final. Por isso o sucateamento e a politização das agências reguladoras, na última década e meia, foram tão lesivos ao interesse público.
Não há outro caminho para a atividade mineral no Brasil se não a proibição do beneficiamento a úmido. Mesmo as barragens de alteamento a jusante, mais seguras, são muito danosas ao ambiente. Além do risco, nunca pequeno, o beneficiamento a úmido causa danos ambientais severos, mesmo em operação normal. Além da devastação que a atividade em si produz, como no Pico do Cauê, tão dolorosamente documentado por Carlos Drummond de Andrade, o consumo de água é absurdo. Só deveriam permanecer em atividade as minas que comportassem beneficiamento a seco.
Isso é o que faria uma sociedade madura, civilizada, que valoriza a vida humana acima de tudo e preza seu patrimônio cultural, artístico e natural. Uma sociedade que não confunde desenvolvimento a qualquer custo com progresso. Um povo que quer transitar para uma vida pessoal e coletiva de mais qualidade, que busca a felicidade, não apenas o prazer fugaz e a alegria passageira.
* Mineiro de Curvelo, o sociólogo e escritor Sérgio Abranches é especialista em ecopolítica