Os malvados americanos não ditavam os preços do barril
‘A propriedade é um roubo!”, escreveu Pierre-Joseph Proudhon em 1840. Karl Marx fez gato e sapato do anarquista francês, explicando que a economia capitalista é um tanto mais complicada que isso. Não adiantou, a julgar pelas inclinações proudhonianas da esquerda contemporânea, em particular quando se trata de julgar as motivações do “imperialismo americano”. Fernando Haddad, por exemplo, mesmo ao criticar (suavemente) a presença de Gleisi Hoffmann na posse de Nicolás Maduro, dirigiu suas baterias contra a oposição venezuelana, acusando-a de “buscar um status quo anterior”, quando a Venezuela seria “um quintal cheio de petróleo para os americanos”.
A ideia do roubo de recursos naturais corre solta, em meio ao dramático declínio intelectual da esquerda. Há décadas, circula a tese de que os americanos planejam surrupiar a água doce da Amazônia, a fim de abastecer a insaciável Califórnia. Nunca se esclareceu se isso se faria por meio do transporte em baldinhos ou por via técnica menos dispendiosa. No caso do petróleo, porém, a noção infantil do roubo parece menos fantasiosa e, talvez por isso, ganhe ares de coisa séria o suficiente para ser incorporada ao discurso de um professor de Filosofia.
Mas qual roubo? No tempo em que a Venezuela era “um quintal cheio de petróleo”, os americanos o compravam, segundo cotações definidas pelo mercado mundial. Os malvados americanos não ditavam os preços do barril. Antes, a Opep o fazia, sob influência decisiva da Arábia Saudita. Depois, com a explosão do óleo de xisto nos EUA, o mercado tornou-se mais competitivo. Num ponto intermediário, os preços do barril saltaram a níveis recordistas, em torno de US$ 100. Nesse período, a Venezuela seguiu, alegremente, exportando óleo para os EUA — o que propiciou a Hugo Chávez expandir sua popularidade e consolidar seu regime.
A geografia separa radicalmente a Venezuela da China. O petróleo extrapesado da Faixa do Orenoco exige processos de refino singulares, para os quais estão adaptadas diversas refinarias dos EUA. Sob Maduro, Guaidó ou quem quer que seja, o mercado americano continuará sendo vital para as exportações venezuelanas. Hoje, graças ao óleo de xisto, custa muito menos para os EUA dispensar os suprimentos da Venezuela do que custa à Venezuela encontrar consumidores alternativos. Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a vã filosofia de Haddad.
Qual roubo, afinal? A tese talvez não se refira ao comércio, mas aos investimentos. A pérfida oposição venezuelana abriria os campos da Faixa do Orenoco aos investimentos das companhias “ianques”, rompendo o monopólio da PDVSA, a estatal petroleira da Venezuela.
O raciocínio, contudo, esbarra em duas dificuldades. A primeira é que inexiste monopólio da PDVSA. Sob o chavismo, empresas como a norueguesa Equinor (ex-Statoil), a espanhola Repsol e a americana (sim: ianque!) Chevron exploraram petróleo no Orenoco em associação com a PDVSA. A segunda é que, devastada pelo chavismo, a estatal extrai, hoje, pouco mais de um milhão de barris/dia, contra 3,1 milhões em 1998. De fato, a Venezuela precisa de investimentos estrangeiros. Sem eles, não recuperará sua capacidade de exportar — e, portanto, de importar bens de consumo e de produção.
Sob Lula e Dilma, o Brasil não cedeu à tentação de restaurar o monopólio estatal da exploração de petróleo. Os governos petistas limitaram-se a trocar o sistema de concessão pelo de partilha — e não cumpriram a promessa populista da redenção nacional pelo pré-sal. Por que a Venezuela deveria ser condenada por uma eventual tentativa de recuperar os níveis de extração alcançados antes do chavismo?
A lenda sobre o roubo do petróleo revela uma confusão mais profunda, que é a identificação de recursos naturais com riqueza social. Os primeiros são substâncias que ocorrem na natureza e encontram uso econômico útil. A segunda é a capacidade de inventar tecnologias que aumentem o bem-estar da sociedade. Atenção, Haddad: isso depende de educação e ambiente institucional. E não pode ser roubado.