Partidarização de promotores e procuradores se alastra como fogo no cerrado
Eles obedecem a dois senhores. Com a mão esquerda, prestam serviço ao Estado, oferecendo denúncias criminais. Com a direita, propagam nas redes sociais um programa ideológico ultraconservador. Foi com esta mão que uma centena de promotores e procuradores de um certo Ministério Público Pró-Sociedade escreveu uma carta aberta contra os críticos do “pacote de Moro”, responsabilizando-os pelo “caos” na segurança pública “nos últimos 30 anos”. A dupla militância e o tom fanático do texto evidenciam a extensão do “caos” —mas no Ministério Público (MP).
Quem se recorda de Luiz Francisco de Souza, o procurador-militante que, um quarto de século atrás, dedicava seu tempo a produzir notícias destinadas a favorecer o PT? De 1 ou 2 a 100, do petismo ao bolsonarismo, o fenômeno da partidarização do MP alastra-se como fogo no cerrado. O Ministério Público Pró-Sociedade nasceu em congresso realizado na sede da Fundação Escola Superior do Ministério Público do DF, no final de dezembro. O movimento organiza-se como partido político, explicitando sua doutrina.
Do congresso, emanou um manifesto com 23 “enunciados”. Nele, o partido de promotores e procuradores alinha-se com o Escola Sem Partido, sustenta políticas de encarceramento em massa, cinde os direitos humanos para defender exclusivamente os “direitos humanos das vítimas”, critica a “censura ilícita” de notícias falsas na internet e sugere uma censura lícita à “pornografia” em “eventos artísticos”. Nada de errado para um partido político de extrema direita determinado a mudar as leis.
Tudo errado quando se trata de funcionários de Estado encarregados de zelar pelo cumprimento das leis.
Notavelmente, o manifesto do Ministério Público Pró-Sociedade mobiliza uma novilíngua orwelliana. Declara, no prólogo de seu próprio programa de transformação social, que “o MP não deve ser agente de transformação social”. Na mesma introdução a seus 23 enunciados ideológicos, classifica as ideologias como derivações de “sonhos” e “abstrações” contrárias “à concretude dos fatos, da realidade, da verdade”, explicando professoralmente que “conservadorismo não é ideologia, mas expressão da realidade pautada na ordem, na liberdade e na justiça”.
O PT inventou; eles copiaram. O Ministério Público Pró-Sociedade (cujo nome implica uma acusação velada ao restante do MP) inspira-se metodologicamente na Associação Juízes para a Democracia (cujo nome implica uma acusação velada ao restante do Judiciário). São, os dois, típicos “partidos da boquinha”. Tal como os juízes-militantes, os promotores e procuradores militam dentro do Estado, na condição de funcionários com estabilidade, apropriando-se de uma instituição do sistema de Justiça para promover sua plataforma ideológica. E, tal como no caso deles, sua atividade militante é financiada pelos impostos de todos os cidadãos, que pagam seus salários, seus régios auxílios-moradia e seus gordos benefícios previdenciários.
O “pacote de Moro” afoga as louváveis prioridades de combate à corrupção e ao crime organizado num caldo de inconstitucionalidades, mudanças legais inócuas e estímulos à violência policial. Mas, acima de tudo, simula não ver que o encarceramento em massa de pequenos delinquentes converte as penitenciárias em campos de recrutamento das facções criminosas. O ataque furibundo do novo partido de promotores e procuradores tem a finalidade de cercear a crítica ao caldo viscoso que sabota as intenções virtuosas.
A militância político-partidária é direito de todos, fora do sistema policial e judicial. Decisão do Conselho Nacional do Ministério Público suspendeu Luiz Francisco de Souza, por “práticas incompatíveis com o cargo”. O que fazer com uma centena de promotores e procuradores dispostos a, no exercício de suas funções, ignorar a letra das leis para servir à sua ideologia?
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.