As marcas da intervenção militar brasileira para apoiar um governo golpista
O governo Bolsonaro adquire feições militares a cada dia que passa. A última contagem, feita pela Folha, detectou 45 oficiais no primeiro e segundo escalões. São sete ministros, o porta-voz, diretores, gerentes, montes de assessores, chefes na Petrobras, nos Correios e na Funai.
A blitzkrieg deu um chega para lá nos evangélicos fanáticos, nos falcões neoliberais, nos trumpeteiros, nos udenistas de capa preta, no baixo clero e na bruta prole presidencial —a caserna virou a alma do governo. Tal armação não é legado da ditadura.
O PT reinventou os militares. Em que pese aos salamaleques de Sarney, Collor e FHC, eles estavam no desvio desde 1985. Não foram incriminados pelas atrocidades da ditadura, mas mofavam em casernas. O PT os tirou de lá e lhes conferiu uma missão nobre, intervir no Haiti.
Foi a mais longa operação militar da nossa história: 13 anos. Foi a que envolveu o maior contingente humano: 37 mil homens, contra 25 mil na Força Expedicionária na Itália. Foi a única missão na qual Brasil teve autorização para empregar força física.
A ingerência imposta aos haitianos foi sobretudo aquilo que Lula disfarçou: atentado à soberania de uma nação pobre; apoio a um governo fantoche; defesa dos privilégios de uma elite rapace.
A intromissão está sintetizada em “The Big Truck that Went By” (St. Martin’s Press, 320 págs.), de Jonathan Katz. Contudo, o tema do livro é outro. Partindo do terremoto de 2010, no qual 250 mil haitianos morreram, ele disseca a corrupção de grandes empresas e ONGs filantrópicas.
A conclusão de Katz, o único jornalista estrangeiro em Porto Príncipe no dia do sismo, está no subtítulo: “Como o mundo quis salvar o Haiti e provocou um desastre”. Amoldado, o subtítulo caberia à ação brasileira: “O Exército brasileiro foi salvar o Haiti, mas salvou-se a si mesmo”.
Jean-Bertrand Aristide, um ex-padre da teologia da libertação, foi o primeiro presidente eleito do Haiti. Derrubado por militares, voltou ao poder e tomou uma medida extremada para evitar futuros golpes: acabou com as Forças Armadas. Não deu certo.
Grupos paramilitares, gangues e a elite local o afrontaram. Mercenários americanos sequestraram Aristides e o despacharam para o exílio. Milhares dos seus adeptos foram assassinados.
Sob a orientação dos Estados Unidos, a ONU articulou a criação de uma força internacional e a encarregou de policiar o pobre Haiti. Foi esse triste papel, o de caudatário de um golpe, que coube ao Brasil.
Por que Lula topou? Porque embarcara na mística do país unido em torno de si, o líder popular pró-mercado. Ao Brasil apaziguador caberia um assento no Conselho de Segurança da ONU.
Ele também quis dar serventia aos milicos. A utilidade começaria em Cité Soleil e acabaria na Rocinha. O poder armado seria usado contra pardos, pobres e pretos lá fora, para depois aplicá-lo em favelas.
Por fim, a missão no Haiti obteve o apoio de duas bêtes noires do bolsonarismo, além do PT —a ONU, organização que o capitão tachou de “comunista”, e a Cuba de Fidel Castro.
A missão mobilizou a elite do Exército. Oficiais sêniores saíram de quartéis mecanizados, escolas de alto comando e academias militares. Reequipadas com badulaques de primeira, as tropas receberam salários em dobro.
“A experiência foi fundamental para a atual geração de oficiais do Exército brasileiro”, disse o primeiro comandante da missão de paz, general Augusto Heleno Pereira.
Bolsonaro o tornou ministro —e recrutou para o governo outros quatro comandantes da missão haitiana.
“A América Latina tem menos guerras que a Suíça e mais generais que a Prússia”, disse certa vez Fidel Castro. Acrescente-se que a experiência internacional de militares muitas vezes prefigura o uso da força internamente.
No Império Romano, milicos vitoriosos no exterior voltavam para casa e viravam ditadores —vide Júlio César. Na França revolucionária, um general corso liderou campanhas na Itália e no Egito antes de se sagrar imperador.
Nos anos 1930, o general Franco se amotinou no Marrocos e liderou a guerra civil contra a República proclamada em Madri. Nesses três casos, e no Haiti, militares disciplinaram povos distantes e depois se voltaram contra quem os deu poder.
O anjo da história continua a contemplar as ruínas do mundo se acumularem a seus pés. Resta ver, então, como os egressos da missão haitiana, que formam a espinha dorsal do governo Bolsonaro, reagirão aos atos do capitão que nunca saiu de casa.
Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de “Notícias do Planalto”.