Nunca antes um ditador foi tão repudiado como o venezuelano
Nunca vi, em tantos e tantos anos de cobertura de manifestações de massa, uma multidão tão impressionante como a que se reuniu nesta quarta-feira (23) em Caracas para repudiar a ditadura de Nicolás Maduro.
Para quem gosta de comparações, a Folha calculou em 1 milhão de pessoas a massa concentrada no Anhangabaú para o comício das diretas, em 1984. Eu observei —e o jornal publicou— que achava um exagero e comparei com a multidão que, meses antes, acompanhara o comício de encerramento da campanha de Raúl Alfonsín à Presidência argentina. Havia mais gente.
Pois bem: em Caracas havia mais gente ainda do que nos dois grandes atos de massa citados (para não mencionar que houve manifestações igualmente importantes em várias outras cidades). Pelo menos é o que dá para deduzir das fotos feitas com drones e penduradas no site do jornal espanhol El País.
Não resta, pois, a mais remota dúvida de que a Venezuela em massa rejeita Nicolás Maduro. Não por acaso, um dos gritos mais populares da manifestação foi “não quero ‘bono’, não quero CLAP, o que quero é que se vá Nicolás”.
“Bono” é o “Bonus de la Pátria”, dinheiro vivo para comprar pelo menos a anestesia popular; CLAP são os Comitês Locais de Abastecimento e Preços, que distribuem cestas básicas com a mesma finalidade.
Se serviram, até agora, para evitar que a rua fervesse, como ferveu nesta quarta-feira, já não bastam. A pergunta seguinte inevitável é: Nicolás se irá?
Claro que não há uma resposta para a pergunta, por enquanto. Há, entretanto, um dado que pode vir a ser relevante no futuro imediato: a oposição ganhou claramente uma lufada de ar fresco com a escolha para comandá-la de Juan Guaidó (pronuncia-se Guaidô). O tamanho da manifestação dá força à sua proclamação como “presidente em exercício”. Força acentuada pelo reconhecimento por Donald Trump.
Pode ser a chance de iniciar de fato um processo de transição. Ainda mais se prosperar a iniciativa que cinco países europeus estão propondo à Federica Mogherini, uma espécie de chanceler do bloco: França, Itália, Portugal, Holanda e Espanha querem criar o que chamam de “grupo de contato” para facilitar o diálogo entre as autoridades da Venezuela e a oposição para superar a atual situação.
Sou muito cético em relação ao diálogo com Maduro e companhia. Se tivessem um mínimo de decência, já teriam procurado um meio de enfrentar a crise ou, mais decentemente ainda, teriam renunciado e fugido.
Mas não parece haver outra alternativa, descartada como o foi por todos os atores relevantes uma intervenção militar que seria de fato catastrófica.
Se o Brasil tivesse um chanceler credenciado, ele já estaria de volta ao Brasil, para gerenciar uma crise tão tremenda em um país vizinho, em vez de deixar a iniciativa nas mãos de europeus e americanos.
Seu papel em Davos é irrelevante, para não dizer patético. Aqui, poderia coordenar com os países vizinhos e com as embaixadas europeias uma maneira de forçar Maduro a um diálogo realmente produtivo. Se fosse eu, ofereceria um avião para que Maduro e sua turma fujam para Cuba, com o que puderem levar. É a maneira expedita de atender ao grito da rua caraquenha de que Nicolás se vá. E já iria tarde.
*Clóvis Rossi é repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.