Senhor presidente,
Fui empregado do Itamaraty durante 45 anos, seis dos quais como ministro das Relações Exteriores do general João Figueiredo (1979-1985). Ouvi o que o senhor disse em Davos, esperando que o governo da Venezuela “mude rapidamente”. Por cá, tenho ouvido a mesma coisa, pois o presidente Nicolás Maduro arruinou o país. Escrevo-lhe para sugerir que nossa diplomacia trate a crise desse país com quem temos dois mil quilômetros de fronteira seca tirando as meias sem tirar o sapato. Para as pessoas comuns, isso parece impossível, mas no Itamaraty sabemos fazê-lo.
Tenho horror a falar de qualquer coisa, sobretudo de mim. Na Casa corre o chiste segundo o qual eu sou capaz de dormir durante meus próprios discursos. Costumo adormecer os outros mas, mesmo acordado, falo pouco.
Quando sugiro que tiremos a meia sem tirar o sapato, lembro que a hostilidade verbal de seu governo em relação a Nicolás Maduro já foi explicitada. Nossas precauções devem se relacionar com o dia seguinte a uma eventual queda do bolivarianismo. O que advirá? Isso ninguém sabe. Tomara que não aconteça nada e que os venezuelanos resolvam a própria crise.
Em 1965, o Brasil apoiou a intervenção militar americana na República Dominicana, mandou tropas para uma força multilateral de paz e chegou a comandá-la. Mesmo assim, veja a frequência com que se fala das nossas missões militares recentes no Haiti e no Congo. Da República Dominicana, fala-se pouco. O que começou como uma operação destinada a evacuar cidadãos americanos transformou-se numa ocupação, e a tropa brasileira ficou por lá durante 18 meses. Até hoje, a diplomacia americana discute o processo de decisão que levou o presidente Lyndon Johnson a invadir o país. De qualquer forma, a Dominicana fica a dois mil quilômetros das nossas fronteiras.
O Itamaraty tirou a meia sem tirar o sapato em 1982, quando o general argentino Leopoldo Galtieri invadiu as Ilhas Malvinas, ocupada pelos ingleses desde 1833. O general achava que os Estados Unidos ficariam neutros e a primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher absorveria o golpe. Não aconteceu uma coisa nem a outra. Se o Brasil apoiasse Galtieri, seria sócio de uma aventura. Se apoiasse a Inglaterra, alimentaria um ressentimento que duraria gerações. Ficamos no fio da navalha, apoiando o direito argentino à posse da ilha e dissociando-nos da invasão. Lembro-me de que o general Figueiredo foi a Washington e disse ao presidente Ronald Reagan que o Brasil não admitiria um ataque ao continente argentino. Ele não ocorreu, até porque não foi necessário.
Um ano depois do caso das Malvinas, pousou em Brasília um avião americano com o diretor da CIA, William Casey. Ele trazia um recado para Figueiredo: os Estados Unidos planejavam uma invasão ao Suriname e queriam nosso apoio, inclusive com tropas. O governo local era esquerdista, tinha ajuda cubana e perseguia a oposição. Conseguimos dissuadi-lo, dizendo-lhe que deixassem o Suriname por nossa conta. Figueiredo fez saber a Reagan que a condição de país limítrofe determinava que quaisquer efeitos negativos repercutiriam em primeiro lugar sobre nossos próprios interesses.
Nunca contei essa história, mas ela foi revelada no diário de Reagan. Outro dia reclamei com ele da indiscrição. Como ensinou o Barão do Rio Branco, diplomata não sai por aí cantando vitórias.
Perdoe-me a impertinência, mas o último presidente que pensou em mover tropas na nossa fronteira norte, para a Guiana Inglesa, foi Jânio Quadros.
Com meu profundo respeito, Ramiro Saraiva Guerreiro.