“(…) admiramos os EUA, aqueles que hasteiam sua bandeira e cultuam seus heróis. (…) Por isso admiramos a nova Itália, por isso admiramos a Hungria e a Polônia, admiramos aqueles que se afirmam e não aqueles que se negam.” No seu discurso de posse no Itamaraty, o ministro Ernesto Araújo aderiu ao pacto informal dos governos que se exibem como “antiglobalistas”. À primeira vista, é só um discurso constrangedor — e vazio. Afinal, a guerra comercial EUA/China, a imigração, a crise dos refugiados e a integração europeia são dilemas com fraca incidência sobre o Brasil. Um exame mais acurado revela, porém, a existência de uma agenda comum.
Os “antiglobalistas” usam as palavras para iludir. Falam de Deus, da nação, da soberania e da família, como se essa torrente de referências imprecisas delineasse um rumo político discernível. Destemidos, desafiam o ridículo para denunciar uma conspiração contra os povos articulada por elites liberais “globalistas” junto com as forças do “marxismo cultural”, que é identificado à China de Xi Jinping. Nada disso, evidentemente, tem relevância prática. Vale a pena, contudo, prestar atenção nas suas sentenças condenatórias sobre a “ordem global”.
Araújo convoca os diplomatas a “lembrar-se da pátria”, não “da ordem liberal internacional”, uma “piscina sem água”. Convida-os a abandonar “a escola do globalismo”, que teria feito do Brasil “um país inferior”. Arregimenta-os para uma missão de afirmação nacional, na senda iluminada pelos governos nacional-populistas dignos da sua admiração. As indagações cruciais, que ele nunca faz, são “que ordem global é essa?”, “qual é a sua origem?”, “para que ela existe?”.
A ordem do pós-guerra surgiu de duas fontes paralelas. De um lado, a ruína da ordem estatal anterior, devastada pela fogueira do nazifascismo. De outro, o avanço do sistema soviético sobre o leste da Europa. Do Plano Marshall em diante, ergueu-se uma nova ordem alicerçada na aliança transatlântica entre EUA e Europa Ocidental, que se estruturou em torno de instituições multilaterais de segurança (ONU) e de coordenação econômica (FMI, Banco Mundial). O “globalismo”, no termo pejorativo cunhado pelos neonacionalistas, preveniu a restauração do fascismo e derrotou o totalitarismo comunista.
A fogueira do nazifascismo consumiu a ordem europeia das pátrias orgulhosas de suas soberanias absolutas, de suas raízes inventadas pela imaginação romântica, de seus cultuados heróis nacionais. O discurso de Araújo é uma ode nostálgica (e mal escrita) a um mundo que desapareceu há 80 anos. Mas, sobretudo, é uma conclamação à revolta contra o sistema político resguardado pela ordem construída no pós-guerra.
A paisagem contra a qual Araújo se insurge nasceu de um duplo “não”: a Hitler e a Stalin. A chamada “ordem liberal” é uma tela formada por camadas de pintura superpostas, produzidas tanto pelo liberalismo progressista como pela social-democracia. Nela, estão inscritas as regras da economia de mercado, mas também os valores das liberdades públicas e dos direitos sociais. De Trump a Bolsonaro, passando pelo húngaro Orbán e pelo italiano Salvini, o atual movimento neonacionalista é uma reação sombria ao patrimônio de liberdades e direitos legado pelo pós-guerra.
Trump sonha financiar seu muro na fronteira do México circundando o Congresso por meio de uma declaração de “emergência nacional”. Os governos polonês e húngaro tentam subordinar os tribunais constitucionais à vontade do Executivo. Os quatro governantes admirados por Araújo admiram o russo Putin e o turco Erdogan, que suprimiram as liberdades e calaram as oposições. Os “antiglobalistas” não se conformam com a democracia.
O discurso de posse de Araújo expõe oficialmente, pela primeira vez, um programa que permanecia mais ou menos oculto. Esqueça as teorias conspiratórias sobre a “elite globalista”. O chefe do Itamaraty não está traçando um rumo de política externa. Está dizendo para Bolsonaro avançar contra os direitos constitucionais dos brasileiros.