Respeitar o resultado produzido pelo desejo da maioria da população não quer dizer obrigar-se ao silêncio
Amanhã, quando o sol nascer, vai estar começando um novo dia, um novo ano, um novo governo no Brasil. O novo presidente foi eleito por uma maioria significativa de brasileiros, mais de 57 milhões deles. Se bem que, no segundo turno, quando apenas dois candidatos, somente duas concepções de mundo opostas se enfrentaram decidindo para onde vamos, pouco mais de 42 milhões de nossos cidadãos optaram por não votar em nenhum dos dois. Os 8,6 milhões de votos nulos, mais os 2,4 milhões em branco e as 31,3 milhões de abstenções decidiram não escolher ninguém.
Acontece que temos um presidente eleito democraticamente por uma maioria legal e legítima, é preciso respeitar os dois — ele e a maioria de brasileiros que o elegeu. O que não nos impede de fazer certas observações talvez polêmicas. Respeitar o resultado produzido pelo desejo da maioria da população não quer dizer obrigar-se ao silêncio, aceitando o que quer que os vencedores decidam fazer. Na atividade cultural, aquela à qual me dedico, por exemplo, estamos num momento delicado, que não foi inventado pelo presidente de amanhã.
Estimulada pela malícia ou ignorância de alguns críticos perversos, grande parte da população conta satisfeita com o fim da Lei Rouanet no novo governo. Ouvi isso da boca sorridente de um taxista: acabou-se a mamata, o fim da Lei Rouanet vai acabar com a sopa de quem vive às custas do dinheiro público. Uma tolice, pois, de uma forma ou de outra, de um modo direto ou indireto, todo cidadão vive às custas do dinheiro público. E viverá cada vez mais às custas do dinheiro público, na medida em que o Estado for mais eficaz na saúde, educação, transporte, habitação, segurança, em tudo o que for um dever do Estado para com a nação e o povo. E a cultura também é um serviço público, sem o qual uma nação não sobrevive como tal.
Todo governo do mundo investe na atividade cultural do país. Nos Estados Unidos, exemplo por excelência do capitalismo liberal, além das diversas formas de incentivos fiscais estaduais e federais, o governo ainda sustenta um National Endowment para a cultura, a fim de permitir a produção do que não vai necessariamente se dar bem no mercado. Em países europeus, como França, Alemanha, Espanha e outros, esse apoio oficial à cultura é ainda mais intenso. Na Inglaterra, é através dos recursos da loteria do Estado que se faz a cultura nacional. Mesmo na China, o cinema local é produzido por grandes estúdios, situados em diferentes regiões do país e geridos pelos cineastas chineses, com investimentos do Estado.
A Lei Rouanet é uma das formas de financiamento cultural através do Estado mais democráticas e sofisticadas do planeta. E essa defesa que faço dela é absolutamente desinteressada, já que sou cineasta, e o cinema não é uma atividade que a pode utilizar. A questão do cinema brasileiro é outra, não tem nada a ver com a Lei Rouanet, da qual, repito, a produção cinematográfica não pode se beneficiar. É crucial que o presidente Jair Bolsonaro e seus colaboradores entendam essa questão, deem a ela uma solução estrutural prática e moderna, como é a economia do audiovisual.
Não existe outra agência, ministério, autarquia, seja lá o que for, mais soberana e com mais excesso de autoridade do que a Ancine. Ela foi criada em 2001, com uma estrutura que foi alterada para atender ao frenesi dos cineastas e do próprio MinC com a nomeação, no ano seguinte, de Giberto Gil como ministro da Cultura. A ilusão de que a Ancine seria mais poderosa que a própria estrutura em que está baseada a gestão pública no Brasil e mais impositiva do que a economia cada vez mais internacionalizada do audiovisual impediu que o crescimento do cinema brasileiro se consolidasse.
Nosso circuito exibidor está nas mãos exclusivas dos blockbusters (“Bumblebee” acaba de ser lançado em cerca de 1.100 telas, quase metade do que temos); nossos filmes passam em horários quebrados, sem controle de cota e eficácia nenhuma; os produtores brasileiros recebem uma parte mínima da renda de nossos filmes (cerca de 5%, quando há 30 anos ficávamos com de 30 a 40%); e o MinC e a Ancine ainda terminam o ano entregando o futuro do cinema no Brasil aos representantes das grandes empresas estrangeiras e seus aliados internos, através do Conselho Superior de Cinema.
Aliás, um bom início de conversa seria quebrar logo o poder absoluto da Ancine, dividi-la com racionalidade para eliminar seu autoritarismo. A regulação da atividade poderia ficar no universo do ministro Sergio Moro e o fomento, no de Paulo Guedes. Como ela já foi pensada um dia.
Apesar de tudo, o cinema brasileiro tem crescido quantitativa e qualitativamente. Estamos produzindo cerca de 150 filmes por ano e uma nova geração de jovens cineastas está reinventando o cinema brasileiro, com a mesma diversidade cultural do país. É preciso não deixar que isso se acabe da noite pro dia.