O Brasil de Bolsonaro oferece a Maduro um conveniente inimigo externo
Bolsonaro e Ernesto Araújo, o ministro indicado de Relações Exteriores, justificaram os “desconvites” a Díaz-Canel e a Maduro para a posse presidencial sob o argumento de que Cuba e Venezuela não realizam eleições livres.
A lógica empregada exigiria “desconvites” a dezenas de países autoritários com quem o Brasil mantém relações diplomáticas. A política externa bolsonarista começa no registro da pantomima. Nesse caso, a comemoração explícita emana dos grupelhos ideológicos que orbitam em torno do presidente eleito —mas a vitória é do ditador venezuelano.
Maduro mente todos os dias, obsessivamente. Agora, acusa Bolsonaro e o vice, Mourão, de participarem de um “complô preparado na Casa Branca para me assassinar” e “invadir a Venezuela”, num plano que se iniciaria com “provocações na fronteira”.
Nada evitará que ele minta, mas os “desconvites” conferem uma sombra de verossimilhança às suas palavras. O chavismo terminal precisa do espantalho ameaçador do inimigo externo para conservar um mínimo de coesão interna. A folia ideológica brasileira ajuda a prolongar o epílogo do falido regime venezuelano.
Ernesto Araújo é um homem de firmes convicções. Poucos anos atrás, defendia sem corar as políticas econômica e externa de Dilma Rousseff. Nos últimos meses, em pirueta olímpica, passou a repercutir o discurso místico do olavismo e as senhas doutrinárias da Breitbart News.
O folião do Itamaraty pretende operar como peão de Trump na América do Sul. A lógica dos “desconvites” ultrapassa o limite dos gestos simbólicos, apontando para a ruptura de relações diplomáticas com Cuba e Venezuela. Maduro torce por isso, que implicaria a voluntária retirada brasileira do terreno onde se decidirá o futuro da Venezuela.
O chavismo, que nunca foi homogêneo, cinde-se em correntes diversas que encaram o horizonte do abismo. O componente militar do regime, que controla as chaves da repressão, também está dividido.
A cola que ainda prende os chavistas a Maduro é o medo do futuro —isto é, o temor da retaliação e da vingança. Uma transição política sem sangue, ou com pouco sangue, depende de negociações com as alas do regime dispostas a abandonar o barco que naufraga. Para isso, são necessários mediadores. Ernesto, o folião, suprime as credenciais que fazem do Brasil um mediador eficiente.
Sem uma embaixada em Caracas, o Brasil exclui a si mesmo do jogo político. A embaixada deveria servir para municiar o governo brasileiro com informações confiáveis, estabelecer pontes de diálogo com a oposição e explorar rumos de superação da crise com dissidentes chavistas civis e militares. A denúncia permanente da violência do regime é uma obrigação moral e política.
Mas, além disso, o Brasil precisaria ajudar os atores venezuelanos a encontrar fórmulas capazes de conjurar o medo que impede a ruptura. Fora da transição negociada, só existe a guerra civil.
A sobrevivência agônica de Maduro seria impossível sem o amparo da China e da Rússia. Uma solução pacífica para a Venezuela passa pela ativação de canais diplomáticos regionais e globais. John Bolton, o conselheiro de Segurança Nacional de Trump, investe no caos. Já o interesse dos países sul-americanos, especialmente os que compartilham fronteiras com a Venezuela, repousa na perspectiva de uma transição negociada.
O Brasil, atuando ao lado de Colômbia, Equador, Peru e Argentina, teria os meios para persuadir chineses e russos a cortar o cabo que mantém o governo de Maduro à tona. Mas Ernesto, o folião, prefere a pantomima —isto é, a irrelevância.
O Brasil de Lula e Dilma serviu ao chavismo, propiciando-lhe apoio diplomático e um verniz de legitimidade democrática. O Brasil de Bolsonaro prossegue o trabalho do lulismo, oferecendo a Maduro a imagem perfeita de um conveniente inimigo externo. O Ernesto tem custos.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.