Míriam Leitão: Negar o passado como arma política

A negação do passado sempre foi arma política, e usada por qualquer campo, muito útil para esconder crimes de períodos autoritários.
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

A negação do passado sempre foi arma política, e usada por qualquer campo, muito útil para esconder crimes de períodos autoritários

Nos últimos dias, ficou mais difícil a estratégia que tem sido usada pelo presidente eleito e seus apoiadores de negar o passado recente da história brasileira. Os 50 anos do AI-5 foram uma pauta obrigatória porque o Ato Institucional revirou a vida do país, impactou a imprensa, a produção cultural, levou à morte centenas de pessoas, e milhares à prisão e tortura. É fato marcante que completa meio século. Muitos contemporâneos permanecem vivos para contar como a história foi.

As frequentes declarações do presidente eleito, Jair Bolsonaro, de que não houve ditadura seguem um padrão conhecido. A negação sempre foi arma política e usada por qualquer campo, e muito útil para esconder os crimes de períodos autoritários. Lembrar as datas, por sua vez, é parte do conjunto de vacinas contra a repetição dos mesmos erros. Tentações autoritárias sempre espreitaram a democracia.

O brilhante advogado Técio Lins e Silva era um jovem concluindo o curso de Direito e não pôde colar grau. A festa foi impedida pelo AI-5, que fechou o Teatro Municipal. Qual o problema de uma turma da icônica Faculdade Nacional de Direito fazer seu congraçamento? Qual o risco que representa o histórico Teatro Municipal? O Ato Institucional espalhou abusos e irracionalidades.

Em um artigo escrito recentemente, ainda não publicado, a escritora Heloisa Starling busca Hannah Arendt e o livro “As origens do totalitarismo” para lembrar como a negação da verdade é arma conhecida. “A mentira, diz Arendt, consiste em negar, reescrever e alterar fatos, até mesmo diante dos próprios olhos daqueles que testemunharam esses mesmos fatos”, escreveu Heloisa.

Então não há inocência nas declarações sequenciais dadas pelo presidente eleito e seu grupo. “Não houve ‘ditadura militar’ no Brasil! Mentiram para você, jovem!”, escreveu Bolsonaro em um twitter. Em entrevistas: “Foi uma intervenção democrática”, “o povo brasileiro não sabe o que é ditadura ainda”. São abundantes, frequentes, disseminadas.

Os dados e os fatos também são abundantes. A imprensa trouxe algumas estatísticas nos últimos dias. O “Estado de S. Paulo” contou que foram 950 peças de teatro censuradas, 500 filmes, 500 letras de música. E se quiserem mais números, houve 400 mortos, 20 mil torturados, 7.000 exilados. O Congresso foi fechado duas vezes após o Ato.

Há o cotidiano daquele tempo que foi o mais duro dentro da ditadura, a década da vigência do AI-5. Quem conta é Técio:

— Qualquer pessoa que tenha um mínimo de conhecimento da vida sabe o que é não ter habeas corpus. Impedir que o advogado possa se valer desse instrumento extraordinário para conter a violência e o abuso de poder. A primeira coisa que o AI-5 fez foi suspendê-lo, e tínhamos que ser advogados na Justiça Militar sem habeas corpus. Quando ouvíamos de uma autoridade militar que aquele preso era um ‘perigoso subversivo’ já era um salvo-conduto para a vida, porque quando diziam ‘não tem ninguém aqui com esse nome’, aí as coisas eram muito duras, porque era sintoma de que aquela pessoa corria risco de desaparecer.

Rubens Paiva desapareceu no dia 20 de janeiro de 1971. Sem acusação formada, sem militância, o empresário e ex-deputado foi preso pela Aeronáutica, entregue depois ao Batalhão da Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Nunca mais foi visto. Sua mulher Euníce Paiva começa então um doloroso, longo e impressionante processo de superação. Ela, uma dona de casa com cinco filhos, sem qualquer envolvimento político, ao sair da prisão, onde esteve por alguns dias, inicia uma luta em várias frentes. Cria sozinha os cinco filhos, volta à Universidade, faz Direito, integra-se à luta das famílias de desaparecidos políticos, vira uma das líderes do movimento da Anistia e das Diretas. Eunice morreu na quinta-feira, 13 de dezembro, no dia em que o AI-5 fazia 50 anos, numa coincidência simbólica.

Para a direita brasileira seria mais inteligente governar defendendo valores democráticos e implantando políticas públicas nas quais acredita. Mas a direita que chega ao poder prefere defender o indefensável daquele regime e, assim, se misturar ao pior dele. A negação do passado sempre foi arma política. O difícil é entender com que objetivo é usada agora e que vantagem traz para o governo Bolsonaro.

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