Zuenir Ventura: ‘Era impossível não tomar partido diante de uma ditadura que oprimia’

Autor de "1968 - O Ano que Não Terminou" diz que jornalista não deve ter militância política, mas regime impôs uma situação limite.
Foto: Estante Virtual
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Autor de “1968 – O Ano que Não Terminou” diz que jornalista não deve ter militância política, mas regime impôs uma situação limite

Laura Mattos, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO – Ficou famoso no Rio de Janeiro o Réveillon de 1968 promovido pelo casal de intelectuais Luiz e Heloisa Buarque de Hollanda. Com notáveis do cinema, da literatura e da intelectualidade em geral, foi regado à oposição, tanto ao regime militar, quanto às regras do que era chamado de moral e bons costumes. O ano foi desse porre cheio de esperança ao pânico completo estabelecido, em 13 de dezembro, pela assinatura do Ato Institucional número 5. Com a medida, a ditadura se fortalecia, dando poderes ilimitados ao presidente, fechando o Congresso e acabando com o habeas corpus.

Os convidados do memorável Réveillon passaram o seguinte tentando evitar a prisão. Um deles foi Zuenir Ventura, que estabeleceu o arco entre a euforia da festa dos intelectuais e a depressão do AI-5 no best-seller “1968, o Ano que Não Terminou”, de 1988, com mais de 400 mil exemplares vendidos e uma edição comemorativa recém-lançada pela Objetiva. Professor universitário à época, além de chefe da sucursal do Rio da revista Visão, ele decidiu se esconder por uns dias na casa de um amigo, logo após o AI-5. Mas, no início de 1969, diante dos filhos, de quatro e cinco anos, foi levado à prisão, de onde só conseguiria sair após três meses.

Aos 87, o jornalista, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras rememora 1968 nesta entrevista à Folha faz analogias entre o AI-5 e a Lava Jato e avalia que, “quando temos um presidente que diz que o grande erro da ditadura foi torturar e não matar, todo cuidado é pouco” para não voltarmos às trevas daquele ano que, meio século depois, ainda não terminou.

Como estava a sua vida em dezembro de 1968?
Eu tinha 37 anos, já era casado com Mary havia seis anos e tínhamos dois filhos: Mauro, de 5, e Elisa, de 4. Morávamos na Urca. Antes do AI-5, o ano de 1968 no Rio tinha uma vida cultural movimentada: peças, shows, filmes. Os amigos se frequentavam muito, nesses eventos ou nos bares para bater papo tomando chope. Eu tinha amigos no Teatro Opinião (Ferreira Gullar, Teresa Aragão, Paulo Pontes, Vianinha) e no Cinema Novo (Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Geraldo Sarno) e cheguei a participar como entrevistador do filme “Que país é esse?”, de Hirszman. Trabalhava como professor da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) e da Escola de Comunicação (ECO), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de chefiar a sucursal da revista Visão.

Como foi sua formação política?
Não tive formação política. Cursei letras neolatinas na Faculdade de Filosofia e só me interessava por literatura -brasileira, portuguesa, espanhola, francesa e italiana, que eram as disciplinas que estudávamos. Eu era o que se chamava de um “alienado”.

O sr. considera que o jornalista não deve ter militância política. Em 1968, como essa opção se refletia no seu trabalho, na convivência com os colegas, acredito que majoritariamente de esquerda?
Continuo achando que o jornalista não deve ter militância política, a não ser em situações limites, em regime de exceção, como a que vivemos em 1968. Diante de uma ditadura que oprimia, censurava, torturava, era impossível não tomar partido. Ficar neutro naquele tempo significava trair a democracia, compactuar com as trevas. Escondi gente em minha casa, entre os quais o líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião. Emprestava meu carro para membros do Partido Comunista, ao qual nunca pertenci, para dar fuga a perseguidos, enfim fiz tudo o que não faria em situação de normalidade democrática.

Como o sr., que era professor de duas faculdades em 1968, compara o ambiente universitário daquela época com o atual e como avalia as recentes interferências da polícia e da Justiça em manifestações de universidades?
Pelo que vi na imprensa sobre as manifestações de agora, o ambiente era muito pior em 1968 porque faltava a democracia. A diferença pode ser observada por um episódio recente. Quando fiscais eleitorais entraram em várias universidades para impedir manifestações políticas, o STF [Supremo Tribunal Federal] reagiu e referendou por unanimidade a liminar da ministra Carmen Lúcia suspendendo aquelas decisões como inaceitáveis: “a autonomia universitária está entre os princípios constitucionais que garantem toda a forma de liberdade”, ela disse.

Lembra do anúncio do AI-5? Qual foi a sua sensação?
Estávamos na casa de nossos vizinhos Leon Hirszman e Liana quando, às 22h30, o ministro da Justiça, Gama e Silva, e o locutor Alberto Cury leram em cadeia de TV os artigos do Ato Institucional nº 5. Há notícias que chocam, outras, como a do AI-5, que desorientam.

Como acompanhou na época o desenrolar dos acontecimentos referentes ao AI-5 que tão bem descreveu no livro “1968, O Ano que Não Terminou”?
Muito do que aconteceu naquela noite e na madrugada só foi possível descrever depois, por reconstituição. Os momentos seguintes ao anúncio foram de correria e confusão, todos fugindo do “arrastão”. Não se tinha como distinguir os fatos dos boatos, que se atropelavam; os telefonemas não paravam. A prisão de Juscelino, uma das primeiras, parecia mentira, mas de fato aconteceu, era uma incrível verdade. A de Lacerda, que se esperava, aconteceu no dia seguinte. Eu me refugiei no apartamento do amigo Carlos Mariani, onde soube da prisão de Carlos Heitor Cony, Osvaldo Peralva, Joel Silveira. Pânico geral.

O sr. relata no livro a invasão de censores aos jornais na véspera do AI-5. Como foi a sua experiência naquele momento e a partir do acirramento da censura?
Como trabalhava em uma revista quinzenal, de economia, não senti a censura tão diretamente como os colegas dos veículos de maior circulação, como jornais, revistas e televisão. A pior sequela, porém, foi a autocensura. Introjetamos de tal maneira o mecanismo de autopoliciamento que, durante muito tempo, passamos a ser o censor de nós mesmos. Em 1977, Carlos Drummond de Andrade, numa uma entrevista para mim, fez um balanço da geração do AI-5. Um trecho: “os melhores foram destruídos -ou ficaram aterrorizados para o resto da vida ou morreram fisicamente ou desapareceram. Houve um hiato na formação social do Brasil, houve uma geração que não pôde dizer sua realidade”.

No livro, o sr. compara a reunião que aprovou o AI-5 a uma peça surreal dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Há algum evento recente ao qual essa comparação também possa servir?
Alguns fazem paralelo entre o AI-5 e a Lava Jato. Mas, atenção: eles só podem ser comparados por contraste. São marcos de dois sistemas opostos: o primeiro operou a passagem da ditadura disfarçada para a ditadura escancarada. O segundo, quase meio século depois, serviu para fortalecer a democracia. O Ato Institucional concedeu ao presidente da República poder de exceção para fechar o Congresso e punir arbitrariamente, sem precisar de provas, quem se opusesse ao governo. Já a operação comandada pelo juiz Sérgio Morro, agindo dentro da lei, respeitando os direitos e utilizando as investigações e as provas, revelou como quadrilhas compostas por governantes e empresários se apossaram dos bens públicos. Nunca o país teve uma devassa tão completa. As delações premiadas de hoje seriam um bom material para a dramaturgia de Zé Celso.

Que consequências o AI-5 trouxe para a sua vida e qual foi o impacto de ter passado três meses preso em razão do ato institucional?
A maior maldade do AI-5 não foi a mim, deixando-me desempregado, mas a meus filhos que, aos 5 e 4 anos viram o pai, a mãe e o meu irmão, que morava conosco, serem levados de casa sem explicações para “prestar esclarecimentos”. A mãe e o tio voltaram mais de um mês depois; o pai, três meses. Já a melhor coisa que me aconteceu nesse período tão difícil foi a convivência na cadeia com o Hélio Pellegrino, uma das figuras mais fascinantes que conheci na vida. O maior psicanalista do país, poeta e escritor, conversávamos durante o dia e às vezes varávamos a noite. Muita gente pagaria para estar no meu lugar. Ele foi o orador da Passeata dos 100 mil.

O que o sr. encontrou de mais relevante na sua documentação dos arquivos da ditadura?
Quando os arquivos do DOPS foram liberados, fui ver o meu dossiê. Fiquei espantado com a descoberta. O homem mais importante da imprensa carioca não era nem Roberto Marinho nem Nascimento Brito [proprietário e diretor do Jornal do Brasil], mas um indivíduo chamado Zuenir Ventura. Era ele que mandava e desmandava nas redações, era quem decidia que jornalistas deviam ser admitidos e demitidos. Se eu, que nunca pertenci a partido, era aquilo tudo, três meses de prisão foram muito pouco. A paranoia da repressão não tinha limites.

No livro “1968” o sr. fala da geração AI-5, que teve seu discurso desarticulado. Cinquenta anos depois, como avalia as sequelas do AI-5 para o País?
Para se ter ideia do que foi confiscado implacavelmente da chamada geração AI-5, basta citar alguns números. Nos seus dez anos de vigência, foram censurados cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, 100 revistas, mais de 500 letras de música. Só Plínio Marcos teve 18 peças vetadas.

Aquele episódio do AI-5 é algo enterrado no passado ou ainda corremos o risco de passar por algo tão extremo assim?
Acho que não [corremos esse risco]. O País é outro, temos uma democracia, as instituições são sólidas, mas de qualquer maneira, como se sabe, o preço da liberdade é a eterna vigilância. Todo cuidado é pouco, principalmente quando temos um presidente que não acredita que em 1964 houve um golpe e que já afirmou que “o grande erro da ditadura foi torturar e não matar”.

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