O eleitorado parece ter acordado de um torpor de cinco séculos, os políticos se acautelem
Peço licença ao candidato Eymael para utilizar o seu bordão no título acima. Ele, Cabo Daciolo e Vera Lúcia, do PSTU, formaram o time simpático do pleito. Certamente porque foram minúsculos os seus tempos de exposição. Foi impossível não sorrir ao vê-los na propaganda, pois representaram a face sonhadora da disputa. Pareciam sinceros, talvez porque sem terem a chance de maiores explicações. Quem não se divertiu ao ouvir Vera Lúcia afirmar que iria estatizar as cem maiores empresas do País? Somos gratos ao trio, eles suavizaram com suas utopias a hipocrisia de quase todo o processo eleitoral, banhado em promessas absurdas, bravatas e inúmeras falsidades, à direita e à esquerda.
Uma eleição extraordinária, quase espetacular, um definitivo divisor de águas em nossa História. E sua marca principal é alvissareira, pois introduz, finalmente, os sinais de algum amadurecimento político dos eleitores. Esse otimismo tem explicação concreta e não se relaciona diretamente às escolhas realizadas, mas aos movimentos ocorridos.
Nos anos deste século, um silencioso processo vem mudando a amplitude das informações disponíveis e, assim, a capacidade dos eleitores de escaparem das armadilhas e da manipulação dos partidos. É o espantoso fenômeno das “redes sociais”, a grande mudança nos vetores da interação e da ação social, incluindo as preferências dos cidadãos. Some-se o fato à crescente escolarização e estaria dada a receita que explica, ao menos em parte, a essência da disputa eleitoral.
A eleição parece ter sepultado o papel da propaganda obrigatória na televisão. Esta teria tido reduzida influência nos resultados e não condicionou a decisão na boca da urna. Tudo se passou nas redes sociais, na grande conversa mantida entre os eleitores, em seus diferentes e amplíssimos espaços de convivência virtual. E em tempo real, permitindo decisões rapidíssimas. São espaços ainda animados por invencionices, é verdade, contudo a educação política, gradualmente, vai aperfeiçoar esses ambientes de diálogos sociais e, com o tempo, a capacidade de difundir mentiras acabará por diminuir drasticamente.
A eleição, uma vez decantada pelos analistas, vai apresentar outros fortes sinais, respondendo às inúmeras perguntas que estão surgindo. Por exemplo: a fragmentação dos partidos é o resultado de quais fatores? Seria porque os partidos são apenas um negócio ou porque, também, há um processo generalizado de desideologização em curso e, portanto, as diferenças entre programas partidários vêm desaparecendo, gerando os partidos dedicados a focos minimalistas? Se a hipótese for verdadeira, uma boa parte da crise da esquerda se explicaria, pois as grandes narrativas transformadoras deixaram de seduzir a maioria do eleitorado. Contrariamente, é o imediatismo, cada vez mais, o condutor do imaginário coletivo.
Ancorados nessa vasta teia de conversações, os eleitores resolveram usar a racionalidade da punição. Não obstante a monumental crise econômica que nos aflige, decidiram castigar aqueles que viram como sendo os responsáveis: a política em geral, os partidos e os caciques conhecidos, notadamente os citados na Lava Jato. Poucos escaparam da metódica vingança dos cidadãos. Se o clã dos Calheiros sobreviveu, em Alagoas, no Maranhão a família Sarney foi dizimada, assim como os donos do MDB em muitos Estados, sendo igualmente revelador que os três candidatos a senador da elite petista fracassaram no Sudeste.
Quase tudo foi virado do avesso, ampliando a fragmentação partidária e o inesperado aparecimento de novos personagens, modestos no início, para depois subirem aos céus vertiginosamente. Em síntese, os eleitores deixaram o recado claro: “Basta!”. E para assim decidirem, precisavam estar informados sobre a vida política e seus atores. Portanto, talvez pela primeira vez, os cidadãos agiram com irrepreensível lucidez política, lembrando a famosa eleição de senadores em 1974, quando o antigo MDB se vitoriou em 16 dos 22 Estados, abalando a ditadura militar.
Ante tais escolhas, os méritos de Bolsonaro são limitadíssimos, sendo mais o personagem que, para sua sorte, estava no lugar certo e no momento apropriado. A relação direta entre os resultados e o candidato tem baixa correlação e a inteligência política, de fato, está nas mãos dos milhões que decidiram, nas urnas, gritar a plenos pulmões que não é mais possível aceitar a continuidade do descalabro que rege o nosso cotidiano. Seja a violência desmedida ou o desempenho pífio da economia, sejam as tantas iniciativas fortemente controvertidas que vêm caracterizando o Brasil, especialmente após a chegada do campo petista ao poder. Sobretudo, a sensação de sufocamento causada pela corrupção. O Brasil transformou-se numa bizarra sociedade, de um presidente que recebe escroques a altas horas à maluquice da narrativa do “golpe” que nunca existiu, não deixando de citar a alta Corte de Justiça, que age movida pelo narcisismo de seus membros.
Algum dia haveria uma reação. As eleições trouxeram esse reposicionamento, culminando a fermentação que fora iniciada em 2013. Não é uma onda conservadora e, menos ainda, autoritária, mas apenas a afirmação do conjunto de valores sociais que são dominantes entre nós, os quais encontraram um momento específico e definido de manifestação.
Por esse ângulo, os partidos mais tradicionais e que julgavam defender um ideário mais consistente, como o PT e o PSDB, foram os grandes derrotados. Os demais foram menos afetados, pois nenhum tem algum programa conhecido. E o período adiante nos reservará um reordenamento partidário monumental. Surgirão novos partidos e definharão alguns outros. E mudarão fortemente as caras visíveis da política.
São sinais promissores, pois o eleitorado parece ter acordado de um torpor de cinco séculos. Acautelem-se os políticos!
* Zander Navarro é sociólogo e pesquisador em ciências sociais.