Um leitor solicita que eu produza a “carta que Bolsonaro não escreverá”, como complemento da “carta que Haddad não escreverá” (Folha, 13/10). Fazê-lo, porém, seria sugerir uma simetria que não existe.
Há simetria se uma figura no plano pode ser dividida em partes de tal modo que elas coincidam exatamente, quando sobrepostas. A simetria perfeita é uma construção matemática. Na biologia, na arquitetura e na arte registram-se simetrias quase perfeitas. Em política, existem simetrias estruturais, mas não simetrias formais.
Exemplo clássico: os totalitarismos nazista e stalinista, tal como descritos por Hanna Arendt. Mesmo se seus regimes exibiram formas muito distintas, Hitler e Stalin seriam capazes de reconhecer, um no outro, as suas próprias imagens. Isso não acontece com os dois candidatos presidenciais restantes.
Nas simetrias axiais, o eixo de simetria separa a figura em metades espelhadas. É fácil propor espelhismos políticos entre Bolsonaro e Haddad. O empreendimento, contudo, sustenta-se à base de sofismas.
A linguagem da violência é um traço comum ao PT e a Bolsonaro. Mas eles procedem de modo assimétrico. Os alvos do PT que insulta (“fascista”, “racista”) ou tenta excluir alguém do debate público (“inimigo do povo”) são adversários políticos definidos. Já os alvos de Bolsonaro são, além de adversários singulares, grupos sociais inteiros: mulheres, gays, quilombolas. (Nota: o descarrego de Marilena Chaui, “eu odeio a classe média”, não é regra, mas exceção).
A violência, ela mesma, também aproxima os antagonistas. Mas não há simetria. O PT habituou-se a praticar violência simbólica, via militantes que irrompem aos berros em debates políticos e eventos acadêmicos ou se organizam em “atos de repúdio” contra figuras públicas. Já os “camisas amarelas” bolsonaristas inauguram, antes ainda do desfecho eleitoral, a prática da violência física contra pessoas comuns que expressam opiniões divergentes. (Nota: o atentado sofrido por Bolsonaro partiu de um indivíduo desequilibrado, não de uma turba militante).
Tanto o PT como Bolsonaro devem ser reprovados no teste do repúdio a regimes ditatoriais. O PT brada contra ditaduras “de direita”, mas acalenta as “de esquerda”; Bolsonaro faz o contrário.
Também aí, inexiste simetria. O apoio do PT às ditaduras cubana e venezuelana exprime-se genericamente. A nostalgia de Bolsonaro pela ditadura militar brasileira inclui o elogio da tortura e a celebração de torturadores. O silêncio de Haddad diante da morte de Fernando Albán, um opositor sob custódia da polícia política de Maduro, num caso similar ao de Vladimir Herzog, não equivale às homenagens de Bolsonaro ao coronel Brilhante Ustra. As duas posturas são repulsivas, mas assimétricas.
A prova decisiva de que a simetria é falsa encontra-se na história. O PT é fruto da transição da ditadura para a democracia. O partido, principal máquina eleitoral e parlamentar do Brasil, só pode existir no ambiente de liberdades oferecido pelo regime democrático.
Nos seus longos anos poder, apesar de uma certa retórica voltada para dentro, o lulismo respeitou a regra do jogo —inclusive quando seus dirigentes foram condenados e encarcerados. Já Bolsonaro é fruto de uma crise da democracia: o movimento pela “intervenção militar” que acompanhou, como sombra agourenta, o processo do impeachment. A seleção de seu vice e de um círculo de conselheiros militares arromba a porta que separava a política dos quartéis.
Mesmo nas circunstâncias atuais, Haddad não assinará uma crítica dos erros de política econômica, dos crimes de corrupção e das taras ideológicas do PT pois é prisioneiro do lulismo. Se corresse riscos eleitorais, Bolsonaro assinaria um termo falso de imorredouro amor pela democracia pois não está preso a nenhuma estrutura política estável.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.