Luiz Carlos Azedo: Morrer em Manágua

A Nicarágua atravessa a pior crise desde a guerra civil de 1990. Neste ano, já foram mortas mais de 350 pessoas, a maioria civis, sendo 22 menores de 17 anos.
Foto: J. ULATE REUTERS/El País
Foto: J. ULATE REUTERS/El País

A Nicarágua atravessa a pior crise desde a guerra civil de 1990. Neste ano, já foram mortas mais de 350 pessoas, a maioria civis, sendo 22 menores de 17 anos

O brasileiro não é de prestar muita atenção ao que acontece nos países da América Latina, principalmente aqueles com os quais não temos fronteiras, a não ser quando acontece algo muito grave. É o caso do assassinato de Raynéia Gabrielle Lima, de 30 anos, a jovem estudante de medicina baleada por grupos paramilitares na segunda-feira, em Manágua. Ela estudava na Universidade Centro Americana. O governo brasileiro exige a mobilização de todos os esforços disponíveis para a identificação e punição dos responsáveis pelo assassinato.

O Itamaraty está em rota de colisão com o governo do sandinista Daniel Ortega. Repudiou a perseguição a manifestantes, estudantes e defensores dos direitos humanos que vem ocorrendo naquele país, “o aprofundamento da repressão, o uso desproporcional e letal da força e o emprego de grupos paramilitares em operações coordenadas pelas equipes de segurança”. A Nicarágua atravessa a pior crise desde a guerra civil de 1990. Neste ano, já foram mortas mais de 350 pessoas, a maioria civis, sendo 22 menores de 17 anos. Segundo a Associação Nicaraguense Pró-Direitos Humanos (ANPHD), 261 pessoas estão desaparecidas ou sequestradas.

Aos 72 anos, Ortega já governou a Nicarágua por 22 anos, desde a revolução sandinista que, em 1979, apeou do poder o ditador Anastásio Somoza. Recusa-se a renunciar à presidência, mandato que somente terminará em 2021. A situação na Nicarágua é muito semelhante à da Venezuela, num processo de radicalização no qual o governo utiliza grupos paramilitares para reprimir a oposição. No Brasil, a esquerda aliada aos sandinistas, principalmente o PT e o PCdoB, defende Ortega ou faz vista grossa à “fascistização” de seu governo.

Na segunda-feira, milhares de pessoas participaram de uma passeata que terminou diante da Universidade Centro Americana (UCA). Os universitários carregaram cruzes para recordar os mortos durante a onda de protestos, e fotos de seus companheiros detidos de forma “arbitrária” por participar das manifestações. A União Nacional dos Estudantes da Nicarágua (UNEN), ligada ao governo, realizou outra passeata, em apoio a Ortega e para defender punição aos responsáveis pela “tentativa de golpe de Estado”. Os paramilitares se aproveitam para matar oposicionistas. Uma das vítimas foi Raynéia.

Ortega opera uma guinada autoritária em todos os sentidos, daí a oposição generalizada ao seu governo. Em abril, grandes protestos foram realizados contra a reforma por decreto da Previdência, que acabou revogada; recentemente, aderiram à oposição os agricultores que se opõem à entrega da concessão da construção de um Canal Interoceânico ligando o Atlântico ao Pacífico (pelos lagos Manágua e Nicarágua) ao empresário chinês Wang Jing. A forte repressão desencadeou uma coalizão que uniu bispos católicos, feministas, homossexuais, familiares dos assassinados e camponeses. Em resposta, grupos paramilitares operam intensamente desde maio, cometendo assassinatos em todos os protestos.

Demônio

Ortega acusa a oposição de orquestrar as manifestações para retirá-lo do poder. Para ele, bem ao estilo do presidente Nicolás Maduro, da Venezuela, “o demônio está mostrando as unhas”. O sandinista, por sua vez, é acusado de se perpetuar no poder a qualquer custo. Há 11 anos ininterruptos à frente do país, sua mulher é a vice-presidente da República. Sua última vitória, em 2016, foi contestada pela oposição, que acusou a eleição de ser fraudulenta. Ortega também foi acusado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Acnudh) por assassinatos, maus-tratos, possíveis atos de tortura e prisões arbitrárias ocorridas em território nicaraguense.

A Nicarágua tem uma tradição política de confrontos violentos, em razão da guerra fria e da proximidade com Cuba e os Estados Unidos. Na década de 1930, um movimento guerrilheiro liderado por Juan Baptista Sacasa, José María Moncada e César Augusto Sandino lutou contra a presença dos EUA no país. Após a retirada dos norte-americanas do país, Sandino e outros líderes liberais resolveram abandonar o movimento armado. Entretanto, Anastásio Somoza García, chefe da Guarda Nacional, armou um golpe de estado e assassinou Sandino com apoio do governo norte-americano.

De 1936 e 1978, a família Somoza controlou o país. Quando foi derrubada pela Frente Sandinista de Libertação Nacional, a Nicarágua estava mergulhada em profunda crise econômica e devastada pela guerra civil. Os sandinistas tentaram implantar um regime socialista, estatizaram a indústria e fizeram uma reforma agrária. Os EUA reagiram e financiaram “Os Contras”, grupos paramilitares de direita. Obrigados a recuar, os sandinistas convocaram uma Constituinte. Durante a década de 1990, os governos liberais da Nicarágua promoveram uma tímida recuperação econômica. Contudo, questões sociais ficaram sem solução. Nesse contexto, Daniel Ortega venceu as eleições prometendo a redenção dos mais pobres e nunca mais saiu do poder.

Nas entrelinhas: Morrer em Manágua

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