Não é isenta de riscos a discussão sobre os impactos que a democracia tem sofrido
Que o mundo inteiro está imerso em dificuldades é óbvio. E é também óbvio que, por toda parte, as democracias são impactadas de forma negativa por tal situação. Mas daí a dizer que os regimes democráticos estão com um pé na cova vai uma larga distância.
As principais publicações do Primeiro Mundo têm discutido tais impactos com bastante frequência. A discussão é importante, mas não é isenta de riscos. A maioria delas toma os cuidados necessários, mas algumas às vezes resvalam para aquilo que os americanos chamam de self-fulfilling prophecies (profecias que se autorrealizam). Ou, se preferem, para o risco de jogar fora o bebê com a água do banho. Pior ainda é quando, imaginando possíveis sucedâneos para democracias supostamente defuntas, os analistas contrapõem modelos baseados em “ativismos populares” supostamente calorosos e espontâneos à suposta frieza ou ao “mero formalismo” institucional da tradição democrática ocidental.
Dias atrás a newsletter da International IDEA, uma ONG séria, sediada em Estocolmo, adotou uma linha que em geral me causa certa urticária. Título: The vote is no longer enough (o voto já não é suficiente). Mas quem disse que o voto é ou algum dia foi “suficiente”? Neste artigo, com todo respeito à intenção sem dúvida louvável da referida organização, vou tentar pôr alguns pingos nos is.
É correto, corretíssimo, dizer que eleições são uma condição sine qua non da democracia. São uma condição absolutamente necessária. Mas não me consta que algum teórico sério desse regime tenha jamais afirmado que é uma condição também suficiente. E precisamos ir mais longe. Quando dizemos que eleições são uma condição suficiente, é essencial esclarecer em que sentido fazemos tal afirmação. Sim, o pilar fundamental da democracia são eleições periódicas, limpas e livres, nas quais a maioria da população adulta tenha o direito de participar. Eleições “limpas” significam que os pleitos não podem ser vulneráveis à fraude numa escala capaz de distorcer os resultados. Eleições “livres”, que nenhuma ameaça pese sobre os eleitores no momento em que comparecem às urnas, ou seja, que eles estejam livres da coação e da coerção em qualquer de suas formas. Essa condição coloca o regime venezuelano do sr. Maduro e o nicaraguense do sr. Ortega a anos-luz da democracia.
Dito de outro modo, o processo eleitoral da democracia pressupõe um extenso desenvolvimento da legislação e que esta seja aplicada por instituições neutras, fortes e idôneas. Este enunciado parece-me suficientemente claro, mas com certeza não é completo. Onde não exista uma imprensa livre e pluralista, é óbvio que ele soa incompleto. Em certos países, governos implantam programas sociais em tese salutares, que em tese nada têm de ilegal, mas podem fazê-lo de forma maliciosa, com vistas à auferir dividendos eleitorais num grau que se podia compreender cem anos atrás, mas não nos dias que correm. Outra condição sine qua non, associada ao processo eleitoral, é que os contendores reconheçam sua mútua legitimidade e reconheçam as eleições como a única via legítima de acesso ao poder.
E o que dizer do transcurso dos mandatos, quando os eleitos, devidamente empossados, começam a pôr em prática suas plataformas eleitorais? Neste aspecto, as questões cruciais são a dos “objetos de decisão” – quero dizer, sobre que matérias a opção eleitoral faz realmente alguma diferença – e a transparência, ou seja, quanto conhecimento o eleitor tem efetivamente a chance de se informar. Em qualquer democracia, na brasileira inclusive, a diferença entre o mundo atual e o de 50 ou cem anos atrás é imensa. Mas nosso atraso nesse aspecto pode ser medido pela dimensão amazônica das falcatruas cometidas na Petrobrás e pelo muito que continuamos a ignorar sobre a carteira de empréstimos do BNDES. O processo eleitoral avançou muito, mas o acesso à informação ficou para trás. A responsabilidade maior por tal atraso cabe ao Legislativo e aos partidos políticos, incrustados no casco do Estado, servindo mais à alta burocracia que à sociedade e virtualmente impotentes diante das corporações (organizações atreladas a interesses extremamente estreitos).
A terceira dimensão relevante é a da accountability – a possibilidade de efetivamente assegurar a probidade no trato da coisa pública, responsabilizando e punindo o servidor público que a infringe. Essa área tem registrado progressos palpáveis, graças principalmente ao combate à corrupção. Ainda que a Operação Lava Jato e a Polícia Federal tenham cometido alguns excessos, já podemos vislumbrar o dia em que o Brasil terá uma e não duas Justiças, como tem sido de nossa tradição. Nos últimos anos, vimos alguns grandes empresários e até um ex-presidente da República na prisão, algo até recentemente impensável e, a meu juízo, irreversível. O risco, evidentemente, é a Justiça se deixar arrastar pelo clima do “pega, mata, esfola”. Ser rico ou ter sido delatado não torna o poderoso automaticamente culpado de algo, mas a recíproca é verdadeira: esperar que criminosos de colarinho branco deixem confissões autenticadas em cartório ou abram mão da infinidade de recursos que a Constituição de 1988 ainda lhes assegurou é algo que não veremos nem na brilhante democracia norueguesa.
A pedra de toque, no caso, é o início do cumprimento da pena após a condenação em segunda instância, questão que tem contraposto o Supremo Tribunal Federal às duas primeiras instâncias de uma forma indesejável e institucionalmente perigosa. Para bem servir ao interesse maior da sociedade, é essencial que todo o sistema de justiça se empenhe em informar quantos “3pês” (pobres, pretos e putas) ainda se encontram amontoados nas masmorras nacionais sem terem chegado sequer à segunda instância.
* Bolívar Lamounier é cientista político, sócio diretor da Augurium Consultoria e autor de ‘Liberais e antiliberais: a luta ideológica de nosso tempo’ (Companhia das Letras, 2016)