Nelson carregou, como suas, as dores à sua volta
Como todo grande artista, Nelson Pereira dos Santos é uma luz que ilumina a criação de um povo, um marco cultural na história de seu tempo e do tempo que virá depois dele. Uma luz que não se apaga.
Nelson pertence a uma família de artistas modernos que escolheram carregar, como suas, as dores à sua volta. Que fabricaram um projeto de solidariedade universal, capaz de levar sua luz às multidões, com um único sagrado segredo: o da própria vida que deve ser vivida por todos, em sua total inteireza. Nelson foi o barqueiro que levou a canoa do gênio modernista ao porto instável do cinema.
O que ele propunha com seus dois filmes inaugurais, “Rio, 40 graus” (1955) e “Rio Zona Norte” (1957), e o que produzira para Roberto Santos, “O grande momento” (1958), foi bem compreendido pelos cineastas mais jovens, aqueles que logo formariam o Cinema Novo. Era preciso se interessar pelo ser humano mais próximo, sem piedade e sem demagogia, como se se estivesse descobrindo o povo através de sua própria cultura.
No período de aproximação com seus jovens discípulos, no início dos anos 1960, Nelson iria montar “Barravento”, primeiro longa-metragem de Glauber Rocha; “Pedreira de São Diogo”, o episódio de Leon Hirszman em “Cinco vezes favela”; e “O menino da calça branca”, de Sérgio Ricardo. Montando meu episódio do mesmo “Cinco vezes favela”, eu e Ruy Guerra, que estudara em escola europeia de cinema, aderíamos ao grupo. Vivemos tardes e noites de euforia, à mesa de edição, ouvindo as explicações sobre como devia ser do jeito que, suavemente, Nelson sugeria.
Apesar da importância de seus filmes anteriores, “Vidas secas” (1963) era o resultado de tudo aquilo que Nelson nos ensinara, mais o que havíamos aprendido por nossa conta. O gosto por um realismo não necessariamente naturalista, voltado para costumes inéditos, fazia de seus heróis, seres dos quais não devíamos sentir pena como superiores a eles, mas com os quais devíamos nos solidarizar. Impressionados pela luz inédita de Luiz Carlos Barreto, sentíamo-nos responsáveis pelas vidas secas dos heróis, mas não culpados por elas.
É tão imensa a sua importância fundadora, que mesmo o jovem cineasta de hoje, que nunca tenha visto um filme de Nelson, é necessariamente tributário do que ele fez. Ainda que não saibam disso, cada fotograma dos filmes de cineastas brasileiros de qualquer idade, estará sempre impregnado pelo rastro de luz deixado por Nelson Pereira dos Santos. Nelson é um marco eterno no cinema e na cultura do Brasil.
* Cacá Diegues é cineasta