A comoção em torno da ordem de prisão contra Lula pode gerar um efeito colateral importante. O de polarizar um cenário que, ao contrário do que diz o senso comum, estava despolarizado. O que existe no Brasil de hoje é um esgarçamento da cultura democrática, que torna difícil o diálogo essencial ao debate público. É a isso que as pessoas costumam se referir quando usam o termo “polarização”. Mas está errado.
A palavra “polarização” se transformou num clichê e numa mistificação. Como todo clichê, simplifica uma realidade complexa. Trata-se de mistificação porque, ao se comparar os cenários das eleições presidenciais de 1994 para cá, deduz-se que o Brasil ficou menos polarizado, e não mais.
A hora da política
Como o nome sugere, ocorre polarização quando dois partidos políticos atraem, a exemplo do norte e do sul magnéticos, eleitores de diversas tendências ideológicas. Dois, não mais que dois – da mesma maneira que a terra tem apenas duas calotas polares. O Brasil esteve polarizado entre PT e PSDB em seis eleições presidenciais, entre 1994 e 2014. Uma polarização curiosa, entre dois partidos que, a rigor, surgiram do mesmo grupo de intelectuais paulistas. Os que se reuniram para ler “O Capital”, de Karl Marx, nos anos 1950, e posteriormente fundaram o “think tank” Cebrap, nos anos 1970, ocasião em que se aproximaram de sindicalistas como Lula. Na quadra democrática, o PSDB ziguezagueou entre esquerda e direita, e o PT entre ideias econômicas liberais e intervencionistas. PT e PSDB alternaram fase e defasagem até medirem forças pela primeira vez, em 1994. Tiveram um momento de grande consonância de ideias (embora fingissem que não) na passagem de bastão de Fernando Henrique a Lula, entre 1998 e 2006. Depois, se afastaram de vez.
A eleição atual, com múltiplas candidaturas e alto grau de imprevisibilidade, pode representar o fim desta polarização. Ela já foi comparada várias vezes à de 1989 – época em que o Brasil, como hoje, estava despolarizado. No primeiro pleito após a redemocratização, o campo da esquerda se dividia entre Lula, Mario Covas e Leonel Brizola. A direita tinha Fernando Collor, Paulo Maluf e Guilherme Afif Domingos (curiosamente, todos esses nomes, em diferentes ocasiões e intensidades, tiveram algum tipo de relacionamento com o PT). O lendário deputado Ulysses Guimarães, o “senhor Constituinte”, candidato que representava a situação – o PMDB do presidente José Sarney – era considerado “de centro”.
Cabe aqui uma pequena digressão sobre os significados dos termos “esquerda” e “direita” no mundo moderno. A principal referência neste campo é o filósofo italiano Norberto Bobbio, que em 1994 atualizou os dois conceitos para o cenário pós-Muro de Berlim. Resumindo o pensamento de Bobbio, esquerda e direita representam duas maneiras diferentes de promover inclusão social. A esquerda se preocupa com a igualdade – obtida através de políticas públicas, que são financiadas com aumento de impostos. Já a proposta de valor da direita é a da prosperidade – menos impostos, mais crescimento econômico, mais oportunidades. Por este critério, note-se, os governos de Lula e de Fernando Henrique são igualmente de esquerda. Ambos aumentaram impostos e financiaram programas sociais.
É simplista, no entanto, falar apenas em “esquerda” e “direita” hoje. O cenário é bem mais variado e interessante. Há várias esquerdas e várias direitas. No mesmo ano de 1994, o sociólogo inglês Anthony Giddens notou que esquerda e direita poderiam se dividir também no campo da economia (mais ou menos nacionalistas, mais ou menos afinadas com o mainstream da globalização) e da cultura (mais ou menos abertos no capítulo das liberdades individuais, em temas como drogas, aborto ou casamento gay). Bobbio e Giddens são as duas principais referências para pensar direita e esquerda nos dias de hoje.
Cruzando os dois critérios e adaptando-os à realidade brasileira, surgem pelo menos três direitas e quatro esquerdas em nosso cenário. Uma direita liberal, globalista na economia e sem opiniões fortes na área cultural. Uma direita conservadora, globalista na economia e restritiva em termos de liberdades individuais. Uma direita nacionalista, defensora de maior intervenção do Estado na economia. À esquerda, teríamos os social-democratas, liberais na economia e defensores de políticas de inclusão fortes. Os nacionalistas, que defendem gastos do Estado não apenas na área social, mas também políticas setoriais de incentivo à economia. Essas duas vertentes pregam a convivência com o “capitalismo” – ao contrário da esquerda tradicional, que se define como “anticapitalista” e crê que “um outro mundo é possível”. Por fim, existe uma esquerda cultural, focada no tema das liberdades individuais (leia quadro). Ambas – esquerda e direita – abrigam também minorias autoritárias, o que subiria o número de posições de sete para nove.
Tal variedade, presente em 1989, pode ser notada hoje também. Uma direita nacionalista, herdeira do estatismo do regime militar, era representada por Paulo Maluf (hoje seria Bolsonaro, apesar de ter escolhido um economista liberal para coordenar seu programa; o saudosismo da ditadura militar faz parte da receita do candidato). Guilherme Afif Domingos, que defendia um vasto programa de privatizações, era a direita liberal em 1989 — hoje seria João Amoedo. Fernando Collor representava uma terceira vertente, que não se confundia com nenhuma das duas, e derivava de um slogan publicitário – “o caçador de Marajás”. Para as próximas eleições, o governador paulista Geraldo Alckmin tenta se equilibrar na corda-bamba do centro, outrora ocupado por Ulysses Guimarães.
À esquerda, Lula representava os tradicionais, campo para o qual seu partido parece ter voltado hoje – e que já há algum tempo é ocupado por Guilherme Boulos e pelo PSOL, principalmente o do Rio de Janeiro. Próxima a este campo está Manuela D’Ávila, cujas intervenções nas redes sociais remetem aos temas da esquerda cultural. Nas eleições de 2014 Marina Silva ocupou posição tipicamente social-democrata – liberal na economia e com agenda social forte – e se espera que faça o mesmo no próximo pleito. Em 1994, quem ocupava esse posto era Mario Covas com seu “choque de capitalismo”. Ciro Gomes, que se aproximou do grupo desenvolvimentista liderado pelo ex-ministro tucano Luiz Carlos Bresser-Pereira, seria o representante da esquerda nacionalista – campo que, em 1989, era ocupado por Leonel Brizola, a reivindicar a herança de Getúlio Vargas.
O que há de positivo nesse cenário fragmentado é que, no mundo ideal, o debate eleitoral poderia ser bastante rico. O Brasil tem vários problemas concretos a resolver: inclusão social, crescimento econômico, segurança pública e combate à corrupção, para ficar nos itens de agenda que mais aparecem nas pesquisas. Seria interessante se cada uma das várias correntes acima apresentasse suas ideias para atacar tais questões – a rigor, os candidatos e seus times já estão fazendo isso em entrevistas à imprensa. Esse debate essencial, como em 2014, pode ficar em segundo plano se a temperatura emocional subir muito – e se ocorrer, aí sim, algum tipo de polarização, com os “haters” de Lula de um lado e os “lovers” de outro.
Talvez as próximas semanas mostrem, no entanto, que o país não se divide apenas entre “lovers” e “haters” de Lula. Há também posições intermediárias. Os que gostam dele, mas acham que sua prisão se justifica do ponto de vista jurídico. Os que não gostam, mas não veem culpabilidade clara no caso do tríplex. E há ainda – quem sabe a maioria – os que, à esquerda e à direita, gostando ou não gostando de Lula, querem mesmo é que o combate à corrupção não pare por aí, e se estenda aos que escaparam da cadeia por causa do foro privilegiado (caberá ao eleitor decidir, em outubro, se dá ou não uma nova chance a tais políticos). Existem vários tons de cinza entre “lovers” e “haters”, da mesma maneira que existem múltiplas esquerdas e direitas. A realidade costuma ser mais complexa que os clichês e as mistificações.
Talvez, no entanto, as emoções se acirrem. Se isso ocorrer, corremos o risco de perder, mais uma vez, a oportunidade de conversar seriamente sobre o país que queremos ser.
*João Gabriel de Lima é jornalista, ex-diretor de Redação de Época e prepara livro sobre a polarização PT/PSDB