Nabor Bulhões afirma que julgamento sob comoção produz precedentes jurídicos péssimos
Por Mario Cesar Carvalho, da Folha de S. Paulo
O Supremo errou ao colocar em julgamento, e negar, o habeas corpus do ex-presidente Lula. Em vez de tratar de um caso concreto, que divide o país, seria mais produtivo decidir sobre o princípio genérico da prisão após decisão em segunda instância.
A opinião é de um dos maiores especialistas em Supremo, o advogado Nabor Bulhões, 67, que atua na mais alta corte do país há 35 anos. Já obteve vitórias para o ex-presidente Fernando Collor e perdeu no caso do ex-ativista de esquerda Cesare Battisti, quando defendeu que ele fosse extraditado para a Itália.
Em entrevista à Folha, Bulhões, que defende o empresário Marcelo Odebrecht na Lava Jato, criticou a decisão do Supremo de prender a partir da segunda instância e classificou a ordem de prisão a Lula de “prematura” e “desprovida de legitimidade constitucional”.
Folha – Ao negar o habeas corpus do ex-presidente Lula, o Supremo manteve a sua jurisprudência de que a execução antecipada da pena não viola o princípio da presunção de inocência?
Nabor Bulhões – Manteve em termos. Embora o tema de fundo fosse a questão da execução antecipada da pena em face da garantia constitucional da presunção de inocência, o entendimento prevalecente foi o de que, como a decisão a ser proferida teria eficácia só para o ex-presidente Lula, a decisão com que o Superior Tribunal de Justiça negara a impetração lá interposta não consubstanciava constrangimento ilegal à liberdade do paciente porque se fundara na jurisprudência ainda vigente da suprema corte. A jurisprudência diz que a execução antecipada da pena não afrontaria a garantia da presunção de inocência.
Qual foi o peso do voto da ministra Rosa Weber?
Foi decisivo. Ressalvando o seu entendimento pessoal quanto à incompatibilidade entre a execução antecipada da condenação e a garantia da presunção de inocência, declarou que não poderia fazer prevalecer o seu entendimento pessoal neste caso porque não se tratava de um processo de natureza objetiva, como uma ação declaratória de constitucionalidade, mas se tratava de um habeas corpus, um feito de natureza subjetiva, cuja decisão não teria eficácia para todos. Por isso declarou que, tendo o STJ se fundado na jurisprudência ainda vigente do STF sobre a matéria, não poderia estimar que tal decisão fosse ilegal e abusiva para efeito de concessão de habeas corpus. Por que ministros como Celso de Mello e Gilmar Mendes tiveram compreensão diferente de Rosa? Para eles, a natureza subjetiva do HC não impede a análise da questão de fundo. Esses ministros concederam o HC dizendo que, embora o processo tivesse caráter subjetivo, seria possível ao plenário do tribunal rever a tese jurídica da jurisprudência vigente para emprestar-lhe eficácia para todos e efeito vinculante, mesmo se tratando, como se tratou, de declaração incidental de inconstitucionalidade da execução antecipada da pena por incompatibilidade com a garantia constitucional da presunção de inocência. Ao meu ver, agiram corretamente porque há expressivo precedente do plenário nesse sentido. Nada impedia que a ministra Rosa Weber pudesse apreciar a matéria de fundo no julgamento do HC, não tendo que esperar o julgamento de duas ações declaratórias de constitucionalidade.
O sr. acha que foi um erro colocar o HC do Lula em julgamento antes dessas ações?
No meu entendimento pessoal, que é coincidente com o de vários ministros do Supremo, essas ações objetivas deveriam ter sido submetidas a julgamento antes do habeas corpus do ex-presidente Lula. Tenho para mim que o julgamento da relevante questão, no plano abstrato, não atrairia o substrato político do caso Lula que gerou divisões e controvérsias nos meios jurídicos, na opinião pública e na imprensa. Em momentos como esses sempre lembro da advertência do grande advogado americano e professor de Harvard Alan Dershowitz, que dizia que até nos grandes tribunais casos difíceis podem gerar maus precedentes e que casos emocionais podem gerar precedentes ainda piores.
O ministro Luís Roberto Barroso defendeu que a corte deveria ouvir o “sentimento social”. O ministro está certo?
O nosso sistema jurídico de matriz romano-germânica exige do juiz um julgamento isento e imparcial, sempre tendo em conta a lei e a Constituição. No caso concreto, em que por opção do legislador constituinte e do legislador ordinário se estabeleceu de forma clara e objetiva a garantia da presunção de inocência, sendo a liberdade a regra e a prisão a exceção, não se pode conceber que, em nome do sentimento social, se possa mudar a compreensão de matéria que se encontra resolvida no texto constitucional e no texto da lei processual penal. A substituição do princípio da legalidade pelo sentimento da nação já levou a tragédias históricas, como se viu no parágrafo 2º do Código Penal alemão do nazismo: “Delito é tudo o que fere o são sentimento da nação ariana”. Os defensores da prisão após decisão de segunda instância dizem que a medida é essencial para combater a corrupção. Não se pode combater a corrupção violando-se direitos e garantias constitucionais. Da mesma forma que não se pode conceber que juízes possam decidir matérias relacionadas a esses temas sensíveis alinhando-se a movimentos de combate à corrupção e à impunidade. O juiz tem que ser isento e imparcial para absolver ou condenar, tendo sempre como norte a incontornável garantia do devido processo legal.
Os defensores da prisão após a segunda instância dizem que essa medida vale em países de tradição democrática como EUA e França. Isso faz sentido?
Não, não faz sentido. Esse tipo de colocação procura mascarar uma solução que, no sistema jurídico-constitucional brasileiro, representa clara violação de garantia fundamental estabelecida em nossa Carta Magna e na legislação infraconstitucional. Quem se dispuser a fazer uma análise histórica do estabelecimento da garantia da presunção de inocência na Constituição de 1988 verificará que o constituinte fez clara opção pela adoção de um modelo de garantia que não permite execução de condenação sem o seu trânsito em julgado. Mas o legislador constituinte não afastou a possibilidade da prisão em qualquer fase do processo, inclusive após a condenação, ao estabelecer no artigo 5º da Constituição que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”. Mais claro do que isso o sistema não poderia ser.
O Supremo será incongruente se mantiver no julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade a execução antecipada da pena?
Penso que sim. Não faz muito tempo, o plenário do Supremo declarou o estado de inconstitucionalidade do nosso sistema carcerário por sua incapacidade de garantir os direitos humanos. Ora, não parece congruente que o Supremo Tribunal Federal autorize que milhares de pessoas sejam encarceradas em sistema reconhecidamente violador do princípio da dignidade da pessoa humana.
O que o sr. achou da decisão de prender Lula?
A prisão do ex-presidente Lula traz a marca da incongruência a que já me referi: trata-se de uma prisão prematura desprovida de legitimidade constitucional, pois decorre única e exclusivamente de condenação criminal não transitada em julgado. Viola assim o artigo 5° da Constituição e o artigo 283 do Código de Processo Penal.