Cacá Diegues: Um herói do povo

Apesar de, para mim, ter perdido aquela aura de ‘herói do povo’, não considero e nunca considerei Luiz Inácio Lula da Silva um bandido.
Foto: Paulo Pinto
Foto: Paulo Pinto

Apesar de, para mim, ter perdido aquela aura de ‘herói do povo’, não considero e nunca considerei Luiz Inácio Lula da Silva um bandido

Tendo que escrever meu artigo na sextafeira, dia 6 de abril, ignoro se a Federal foi buscar Lula no sindicato dos metalúrgicos, em São Bernardo, ou se ele se entregou em Curitiba. De repente, a história se torna veloz demais, não espera pelo artigo de ninguém, as eras se sucedem em horas. Talvez minutos. Nesse caso, é também difícil dizer alguma coisa que já não tenha sido dita sobre Lula e sua eventual prisão.

Lula foi um sonho que todo brasileiro acalentou um dia. Não quero dizer sonho como quem diz o inalcançável ou o irrealizável. Sonho, aqui, é como quem diz esperança. Uma esperança que começa com um cara muito pobre, vindo do Nordeste faminto, um rapaz retirante, sem eira nem beira, que acaba por nos encantar porque é um gênio político e tem um projeto lindo.

Depois de alguns anos de atividade sindical e campanhas eleitorais meio ingênuas, Luiz Inácio Lula da Silva se reconstruiu para o eleitor, graças sobretudo a uma carta milagrosa destinada ao povo brasileiro, que a leu e gostou, em 2002. Nela, entre sinceras juras de fidelidade e promessas de justiça e progresso para todos, Lula prometia tudo o que mais queríamos naquele momento de raro equilíbrio no país, o momento posterior aos dois mandatos bem-sucedidos de FHC. Paz e amor.

Lula haveria de cumprir o que prometera. Apesar do interregno surpreendente e sórdido do mensalão, em que mal podíamos acreditar na lama que alguns faziam correr por baixo dos avanços do governo, o presidente se impunha e a seu partido, o PT, como responsável pela manutenção da inflação baixa, o significativo crescimento econômico, a dívida externa em dia, o consumo popular generoso, a mobilidade social de boa parte da população. Éramos o centro das atenções do resto do mundo, convencido de que o Brasil encontrara finalmente o seu futuro. E isso o país devia a Lula, the guy (o cara), como o nomeara com admiração Barack Obama, em encontro internacional de cúpula.

No fim desses gloriosos oito anos de sucesso, com 85% de aprovação dos brasileiros, o presidente impôs, graças a seu justo e inabalável prestígio, sua sucessora. Foi no rastro dos desacertos econômicos e sociais do governo Dilma Rousseff — com a volta da inflação, a perda do poder aquisitivo da população, o crescimento desmesurado do desemprego, o PIB em queda, a violência urbana desenfreada, o recuo em avanços obtidos pelo governo anterior, da crise na Petrobras à campanha do impeachment — que floresceram as acusações que alimentaram os inimigos de Lula. Inimigos que se multiplicaram a partir daí.

Lula colaborou com a construção dessa nova imagem de arrivista e corrupto. Minha primeira grande decepção com ele — meu herói na luta contra a ditadura, na organização dos operários em São Paulo, na criação de um novo partido popular, reformista e ético — foi quando li sua declaração, feita com certa comicidade, de que agora ele preferia usar terno e gravata, em vez do macacão operário, do qual graças a Deus se livrara. Isso dito por um homem que caíra nos braços do que havia de mais conservador na política nacional, do velho PMDB aos ruralistas de Kátia Abreu.

A gente ia perdoando tudo, em nome do que Lula já dissera e fora, quando esbarramos com a descoberta do sítio de Atibaia e com o tríplex no Guarujá. Mesmo que nenhuma das duas propriedades lhe pertencessem, um líder popular como aquele não podia estar envolvido com tais vantagens classistas, não tinha o direito de nos desiludir desejando aquilo que seu povo não podia possuir.

Não consigo imaginar Martin Luther King levando um tiro na sacada de um hotel de luxo. Ou Nelson Mandela passeando nos jardins da mansão que o governo da África do Sul lhe havia oferecido e ele recusara. Isso para não falar no mais radical Mahatma Gandhi. Na cabeça de seus eleitores e seguidores, Lula era um desses heróis. Agora, a impressão que ele podia nos dar, era a de que desistira de seu papel original e se tornara um político burguês, progredindo na vida como outro qualquer.

Apesar de, para mim, ter perdido aquela aura de “herói do povo”, não considero e nunca considerei Luiz Inácio Lula da Silva um bandido. Como escrevi no início deste artigo, não sei como se completou o drama de sua prisão. Mas, por tudo o que representou e fez pelo país, tanto no plano político e de governo, quanto no plano simbólico, ele não merece ser preso.

Ouço dizer que Lula tem que ser preso porque a lei tem que ser igual para todos. Mas será que ele é mesmo igual a Sérgio Cabral, a Eduardo Cunha ou Geddel Vieira Lima, aos funcionários da Petrobras ou da Odebrecht que estão em cana, tantos outros mais dessa estirpe? Sinceramente, não acredito nisso.

*Cacá Diegues é cineasta

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