Cresce no País apoio a políticas e candidatos antidemocráticos. Esse filme não tem final feliz
Guilherme Boulos teve sua candidatura à Presidência recentemente lançada pelo PSOL. Quem o apoia diz que ele representa a “nova esquerda”. Só se o critério for etário. Boulos de fato ainda não chegou aos 40 anos e tem adeptos na juventude. Mas seu pensamento é velho. Basta dar uma olhada no que diz e escreve. A quem se dispuser recomendo a entrevista publicada no livro A Crise das Esquerdas (Civilização Brasileira, 2017).
Ali ele faz o elogio das experiências bolivarianas Na sua visão, teriam promovido grandes avanços para as massas populares, em contraste com o reformismo aguado dos governos petistas no Brasil. A explicação para a imensa crise que se abate há anos sobre as mesmas massas populares na Venezuela estaria na perda da liderança política de Hugo Chávez e na consequente falta de condição política para o país avançar na trilha das expropriações de propriedades privadas e controle total da economia pelo Estado, aberta sob o comando do falecido líder. Só uma “ruptura revolucionária” permitiria à Venezuela superar a dependência do petróleo e construir o socialismo do século 21.
Nem lhe passa pela cabeça que a tragédia do país vizinho possa ter alguma relação com a destruição produtiva acarretada justamente pelas medidas que ele elogia. Na Venezuela grande parte da população passa fome porque os governos chavistas dizimaram a agricultura do país e mataram a galinha dos ovos de ouro, a PDVSA, estatal do petróleo, que hoje produz bem menos do que ao início do ciclo “revolucionário”. Não há oferta doméstica de alimentos nem dólares para importá-los em quantidade suficiente. Sobre a repressão crescente aos opositores do regime? Nem uma palavra de Boulos. Quanto à Bolívia, nada a declarar sobre a submissão das instituições do Estado à vontade de Evo Morales. A propósito, o presidente boliviano um mês atrás obteve da dócil Suprema Corte o direito que lhe havia sido negado no ano passado por um referendo popular em que a maioria disse não à pretensão de Morales de concorrer a um quarto mandato. Mais um líder bolivariano obcecado por eternizar-se no poder.
Ao analisar a situação do Brasil, Boulos repete surrada ladainha sobre as causas da grave crise fiscal que o País enfrenta. A solução consistiria em aumentar a carga tributária e fazer a auditoria da dívida pública sob a suposição de que parte dela se formou por conluio entre o governo e o mercado financeiro e não deveria, portanto, ser paga. Acertar-se-iam assim (perdão pela mesóclise) dois coelhos com uma só cajadada: o problema do desequilíbrio fiscal e da má distribuição da riqueza no Brasil. É um velho engano, que nenhuma liderança política ou economista de esquerda ou de direita, se minimamente preparado, subscreveria.
A carga tributária total no Brasil já é alta (precisa ser mais bem distribuída, para que os ricos paguem mais tributos, mas aumentá-la teria efeitos negativos sobre o potencial de crescimento do País, que deve ser elevado, e não diminuído). Já a dívida pública, cujo tamanho como proporção do PIB está em níveis perigosamente altos, não tem origem espúria. Ela expressa a acumulação de déficits, exercício fiscal após exercício fiscal. Essa tendência deriva em larga medida do aumento recorrente das despesas públicas, em particular da Previdência Social, nos últimos mais de 20 anos. Sim, os gastos públicos devem ser dirigidos prioritariamente às necessidades básicas da maioria da população, mas é embolorada ilusão desconsiderar os limites ao seu crescimento ou supor que dar o calote na dívida pública resolva o problema fiscal. Serviria apenas para desorganizar a economia e reativar a inflação, em prejuízo dos mais pobres.
Boulos é líder de um movimento social expressivo que luta por uma causa justa: o acesso à moradia digna para todos os brasileiros. Os fins, porém, não legitimam quaisquer meios para alcançá-los. Ele justifica as invasões com base na função social da propriedade, conceito presente na Constituição brasileira. A questão é quem define se esta ou aquela propriedade está a cumprir sua função social ou não.
Apoiado na Constituição, o líder do MTST poderia usar sua capacidade de mobilização para demandar ao Ministério Público, ao Judiciário, a parlamentares e governantes ações e programas de reforma urbana que atacassem os mecanismos de produção e reprodução da desigualdade social nas cidades. Ele, porém, optou por outro caminho, e não é ocasional que o tenha feito. A arregimentação de pessoas pobres em torno do objetivo de invadir para conquistar o direito à moradia é instrumental à sua estratégia de “construção de um poder popular” que, por acumulação de forças com outros movimentos, levará, acredita, à ruptura revolucionária em algum momento futuro. Pela mesma razão, Boulos sustenta a importância de ações de bloqueio de vias públicas. Ao inebriado revolucionário pouco se lhe dá a consequência dessas ações para a vida das pessoas comuns.
Na perspectiva da acumulação de forças rumo à ruptura revolucionária, a violência é uma necessidade histórica que se impõe cedo ou tarde. Essa ideia tem mais de um século e está no cerne do marxismo-leninismo. Na América Latina, ela se expressou ao longo dos últimos anos na formação de milícias bolivarianas armadas pelo governo chavista. Hoje seus grupos mais truculentos, os chamados “coletivos”, se dedicam a intimidar, espancar e, não raro, matar os opositores do regime, em nome da “revolução”.
O Brasil não é e não será a Venezuela. O perigo aqui é outro. Ante o fantasma da desordem social, que grupos de direita sabem explorar, com a ajuda involuntária de discursos irresponsáveis de parte da esquerda, cresce na sociedade o apoio a políticas e candidatos antidemocráticos. Quem já leu ou viveu o suficiente conhece o fim desse filme. E ele não é feliz. Importa evitar que se repita.
* Sérgio Fausto é Superintendente da Fundação FHC