A esquerda abdicou da renovação do sistema político, contribuindo para sua deterioração
Os sinais de alarme agora soam com estridência e vêm das mais variadas partes: a democracia política, tal como a conhecemos, está submetida a tensões talvez inéditas, ameaçada por inimigos inesperados e considerada por muitos como incapaz de se expandir e garantir uma vida cívica à altura de suas promessas. A eleição de Donald Trump em 2016, mesmo descontado o fato não irrelevante de sua derrota no voto popular, como que acentuou brechas até então pouco percebidas: aqui e ali, vozes que se supunham definitivamente ultrapassadas ou, quando muito, com vocação minoritária adquiriram novo fôlego e, como se tornou comum dizer a partir de então, passaram a amplificar o mal-estar dos “perdedores” da globalização.
Na desorientação não só política, mas sobretudo cultural, que nos marca a todos e encurta nossos horizontes, houve quem, à esquerda, saudasse a ascensão do novo presidente americano como um revés fatal para o neoliberalismo globalista, tal como, algum tempo antes, a queda do Muro de Berlim havia selado a sorte do socialismo real. O nativismo e o protecionismo econômico de Trump seriam uma estratégia a ser imitada, com as devidas alterações, pela esquerda dita soberanista, que pressupunha assim as fronteiras nacionais como as mais adequadas para a defesa da cidadania política e social. Nenhuma reminiscência, nessa esquerda, do clássico internacionalismo do Manifesto marxiano, que cantava em prosa e verso a capacidade capitalista de arquivar provincianismos, dissolver barreiras nacionais e unificar, ainda que contraditoriamente, a sociedade dos homens e das coisas.
E talvez mais grave ainda: subestimava-se o impacto que a nova presidência teria, como tem tido, sobre a democracia na América e, consequentemente, em todo o mundo. De fato, as pulsões extremistas que sustentaram o triunfo de Trump, com sua carga de racismo, sexismo e xenofobia, inevitavelmente produziriam um efeito corrosivo sobre a coesão social. A polarização destrutiva viria a se confirmar como o novo padrão de enfrentamento político, amplificado, ainda por cima, por “guerras de cultura” em desfavor da mais recente geração de direitos, ambientais e de gênero, que pouco a pouco abria caminho. Projetando-se para além dos Estados Unidos, o trumpismo reforçaria tendências francamente reacionárias um pouco por toda parte, como nos é dado ver até bem perto de nós, entre outras coisas, com a instrumentalização irresponsável de valores familiares e religiosos.
Uma após outra, e já com exceções contadas, as democracias europeias entraram em sofrimento, arrastando nisso o extraordinário projeto da casa comum. A social-democracia alemã agora refaz sua aposta, não isenta de riscos, na grande coalizão com os democratas-cristãos de Angela Merkel, uma dirigente de exceção, como se viu no acolhimento dos fugitivos das guerras no Oriente Médio em 2015. Não fosse o fenômeno Emmanuel Macron, a repropor um “centro” que queremos ver ousado e renovador, a velha França de 1789 seria palco, hoje, de aventuras irresponsáveis. E na Itália, país de rica tradição de esquerda, duas modalidades relativamente distintas de populismo, uma das quais de extrema direita – a Liga de Matteo Salvini –, amealharam os votos de expressiva maioria. Ainda que por ora não se saiba o que farão exatamente com o largo consenso obtido, trata-se de uma mudança de tal ordem que faz do notório Silvio Berlusconi um exemplo de “moderação”. E a esquerda, quer a reformista do Partido Democrático, quer as formações radicais, terá de se reconstruir em condições críticas, com déficits programáticos e dificuldades de inserção, dada a mudança verdadeiramente epocal das estruturas econômicas e sociais.
O ciclo da esquerda latino-americana no poder não foi a luz no fim do túnel. A transição exemplar no Chile, com a passagem de bastão entre Michelle Bachelet e Sebastián Piñera, entre o centro-esquerda e o centro-direita, é acontecimento a ser saudado efusivamente na perspectiva de uma regular democracia de alternância. Processos muito diferentes entre si – eleições no Equador e na Argentina, impeachment no Brasil – sofrem o estigma do “golpe”, palavra que se vulgariza no pensamento único de uma certa esquerda populista e autoritária, que, como mostra o caso chileno, está longe de ser a única possível. Na Bolívia, reeleições indefinidas para sagrar o mesmo mandatário, ainda que contra o veredicto formal de um plebiscito, são justificadas como expressão de respeito aos direitos humanos do mandatário: nada mais do que um acinte. E a infeliz Venezuela, à beira de tragédia humanitária, contribui para desonrar o conceito de esquerda aos olhos dos democratas de todos os matizes. A insanidade, com efeito, não se detém diante de limites ideológicos. Será, ao contrário, uma das propriedades mais bem distribuídas entre dramas e atores de qualquer orientação.
A esquerda latino-americana, na floração mais recente, deu sua chancela à polarização que destrói o terreno comum representado pelas democracias constitucionais. Fugiu do tema crucial do centro político, apostando na contraposição entre povo e “elites”, aí incluídas as modernas classes médias e as profissões liberais, que seriam reacionárias por definição. Ou, então, considerou aquele tema de modo matreiro, acionando mecanismos de cooptação dos adversários/inimigos a partir do controle das alavancas estatais. Como mostrou o exemplo brasileiro, abdicou do papel histórico de renovação do sistema político, contribuindo antes para sua deterioração e ruína.
Os sinais são múltiplos e contraditórios – e nem todos auguram bom desfecho. Na falta de uma gazua ideológica, só por tentativa e erro será possível lê-los. Em outras ocasiões de risco extremo, houve uma esquerda, inclusive comunista, que soube interpretar o mundo real e acorrer em defesa da civilização. Só venceremos o caos ao redor se assim for também desta vez.