Luiz Werneck Vianna: A vitória da Constituição

A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História.
Foto: Roberto Jayme/ASICS/TSE
Foto: Roberto Jayme/ASICS/TSE

A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História

Para quem queria a ocupação das ruas pelo povo, o cenário deste carnaval que passou, com as multidões que mobilizou nos blocos e nas escolas de samba, principalmente na capital paulista, ainda sem tradição nesse tipo de manifestação carnavalesca, surpreendeu os mais céticos, que não esperavam a volta da alegria na vida popular. Embora sem perder a conotação de crítica social, o momento catártico foi o dominante entre a nova geração, que ainda não conhecia a experiência carnavalesca, em particular entre as jovens que acorreram em massa aos blocos, num movimento indisfarçável de afirmação de gênero.

Com esse registro, a que se deve acrescentar o do desfile das escolas de samba, a política conta com mais uma matéria para a reflexão nesta hora de seleção das candidaturas presidenciais, ainda sem definição. Relativizando o caso de alguns desfiles que optaram por uma crítica política contundente ao governo, uma vez não se pode evitar o comentário do jornalista Ancelmo Gois, ao lembrar que no Brasil “prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e uma escola comandada por um bicheiro, a querida Beija-Flor, vence o carnaval que fala de corrupção” (O Globo 15/2).

Essa hora de escolha que já tarda, não só pelas dificuldades naturais ao momento que se vive, mas também porque a cultura do golpismo, essa segunda pele da nossa política, já encontrou uma nova modalidade de conspirar contra o processo eleitoral, a partir de uma declaração de um delegado de polícia sobre um inquérito de presumidas ações praticadas pelo presidente da República. O mais triste desse episódio está no fato de envolver um alto membro do Poder Judiciário, de quem sempre se esperam atos e palavras de concórdia, e esteja ele puxando a corda em favor do prolongamento da nossa agonia.

A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História, em mais uma tentativa de destituição por um processo judicial do chefe do Executivo, como está em curso, uma vez que não contam nem com as ruas nem com os quartéis. Nos seus cálculos malévolos maquinam que com o governo acéfalo caberia ao Poder Judiciário o exercício de um governo de transição que dirigiria, amparado pela Polícia Federal, o processo eleitoral. Tal solução, ou algo próximo a ela, talvez seja o que nos falta para nos converter num imenso manicômio em que todos os internos se apresentem como candidatos à Presidência da República.

Mas o mundo gira e a Lusitana roda, imprevistamente o cenário e o enredo se transfiguram com um movimento de peças desse jogo de xadrez ainda distante de encontrar um vencedor. Nessa nova disposição, provocada pela intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, o centro de gravidade da crise se desloca do tema da corrupção política para o da violência e da criminalidade organizada, cujo poder já ameaçava nacionalizar-se e se projetar no campo da política. Mudando o repertório, o peso dos atores envolvidos igualmente muda, com a depreciação do papel do Poder Judiciário, até então o principal protagonista da conjuntura, que cede lugar ao Poder Executivo, que trouxe a iniciativa para si e para a corporação militar, numa arriscada operação que se esforçou por se manter, malgrado alguns senões, nos trilhos constitucionais, a essa altura chancelada por esmagadora maioria nas duas Casas legislativas.

Um dos efeitos colaterais dessa intervenção foi o de revelar o tema da segurança como central para partidos e candidatos na formulação dos seus programas. Ao contrário da blague famosa, parece que aqui, pelos sucessos recentes, o tema da economia valerá na hora do voto menos do que se previa.

Confirma-se, mais uma vez, o desamor da política brasileira pela linha reta. Aos sobressaltos, dia após dia, avança-se para o momento eleitoral, quando o destino das urnas será selado pelo êxito ou fracasso da intervenção federal na política de segurança.

Os dados estão lançados. E ainda sujeitos à manipulação humana, que pode ser decisiva para a boa sorte da iniciativa de alto risco do Executivo. Muitos não a querem por cálculo eleitoral, ou pelo temor de que as Forças Armadas, peça central na intervenção sobre os aparatos de segurança, venha atropelar a ordem constitucional em nome de uma política de salvação nacional, pondo-se no lugar dos juízes que tinham como alvo o mesmo propósito. Neste tempo em que reina a suspicácia, conta contra a hipótese malévola o fato forte de que a corporação militar se tem comportado sob estritos padrões constitucionais e das normas que regulam seus princípios hierárquicos.

A competição eleitoral, tenha o resultado que tiver, importa mais por provocar a agregação de vontades e de programas do que pela candidatura vitoriosa, que, seja qual for, estará pautada pela agenda das questões discutidas exaustivamente ao longo destes três últimos anos. Será uma oportunidade, que não pode ser perdida, para uma recomposição partidária que nos emancipe do domínio das corporações que às nossas costas pretendem guiar nosso destino. Desde as magistrais lições de Pierre Bourdieu sobre o Estado se sabe que o segredo da força das corporações está em revestir os interesses particulares dos seus membros em pleitos públicos de caráter geral. No nosso caso, liberar a política transita pela limitação do poder das corporações, que com frequência impõe a todos a sua agenda de interesses particulares, em detrimento dos da maioria.

Mas, apesar de tanta confusão, neste país onde todos querem ser califa no lugar do califa, há algo a ser comemorado, qual seja, o fato de que todos os envolvidos nesse charivari nacional jurem estar agindo em nome da Constituição. E, de fato, se as aparências ainda contam, a sorte parece que vai sorrir para quem persuadir o maior número de eleitores de ser aquele que melhor representa o espírito do texto constitucional, que favorece a igualdade.

 

 

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