O interregno Temer afastou por dois anos o espectro do descalabro fiscal, mas nada fez para eliminá-lo
Aqui em Washington começa a despontar algum interesse sobre as eleições brasileiras. Nas últimas semanas foram vários os eventos em que participei pela cidade onde acadêmicos, integrantes do governo americano e membros do setor privado têm se reunido para refletir sobre os cenários e suas implicações. Pouco se estranha que as atenções estejam majoritariamente concentradas em mapear os presidenciáveis e as chances de cada um. Tampouco surpreende que muitos dos participantes desses seminários acreditem que, apesar da imprevisibilidade, há chance de que algum candidato favorável às reformas consiga chegar ao segundo turno, ecoando o otimismo cauteloso que hoje caracteriza muitas análises do Brasil produzidas no Brasil. Mas é quarta-feira de cinzas. Acabou nosso carnaval. Ninguém ouve cantar canções. Portanto, é necessário pensar sobre os custos econômicos crescentes da fragmentação política.
Muito se fala sobre os presidenciáveis, pouco se reflete sobre o Congresso. Como bem sabem os cientistas políticos – brasileiros ou não –, tem o País o poder legislativo mais fragmentado da América Latina. Usando métricas como os índices que medem o número efetivo de partidos, isto é, medidas que ponderam o número de partidos no Congresso por seu peso, seja por número de assentos ou poder de voto, o Brasil é absolutamente fora de padrão. Em 2014, quando das últimas eleições gerais, exibia o País índice de fragmentação política cerca de 4 vezes maior do que a média da região. A tendência da fragmentação política brasileira também assusta: somente entre 2010 e 2014, a fragmentação aumentou ao redor de 30%; entre 2002 e 2014, os índices de fragmentação revelam aumento de quase 50%. Diante da notável polarização do País revelada nas pesquisas de opinião e na boca do povo que hoje ocupa as redes sociais, as chances de que vejamos novo salto na fragmentação legislativa em 2018 são enormes.
Como mostra vasta literatura acadêmica sobre a relação entre fragmentação política e qualidade da política fiscal, tais constatações são assustadoras. De modo geral, há forte correlação positiva entre fragmentação política e gastos, déficits e dívida pública. Estudo recente do FMI usando dados para 92 países entre 1975 e 2015 mostra que um maior grau de fragmentação política está geralmente associado a aumentos na dívida pública. Além disso, a análise revela que a corrupção acentua tal correlação, ou seja, em países onde há mais corrupção, a relação entre fragmentação política e aumento da dívida é mais forte.
No caso específico do presidencialismo de coalizão brasileiro não é difícil explicar porque isso ocorre: quanto mais fragmentada a política, mais precisa o governo gastar – com emendas parlamentares, por exemplo – para manter uma coalizão relativamente estável. Coalizão que aprove, por exemplo, seus planos de reformas e ajustes. Se os planos de reformas e ajustes requerem redução dos gastos, dos déficits, das dívidas, percebe-se com facilidade que a maior fragmentação do poder legislativo é incompatível com a consolidação fiscal. Eis o nosso nó górdio.
O Brasil tem, hoje, situação fiscal insustentável. Com ou sem a diluída reforma da Previdência que voltará brevemente à pauta depois do carnaval, os déficits fiscais continuarão altos nos próximos anos, a dívida pública seguirá aumentando. Atualmente, segundo a metodologia do FMI, nossa dívida bruta está na faixa dos 83% do PIB. Sem ajustes ou reformas profundas, é fácil traçar cenários em que a dívida alcança os 100% da renda gerada na economia brasileira em apenas dois anos. Há quem acredite que esse cenário não haverá de se concretizar pois o País acabará elegendo alguém que defenda as reformas. A ingenuidade dessa tese está na premissa implícita de que o novo governante conseguiria tudo reverter independentemente da composição do Congresso. Contudo, diante das evidências empíricas e da possibilidade de que o fogo e a fúria dos eleitores entregue-nos poder legislativo ainda mais fragmentado do que temos hoje, cai por terra qualquer tese esperançosa.
O interregno Temer afastou por dois anos o espectro do descalabro fiscal, mas nada fez para eliminá-lo. A herança para lá de maldita, construída por anos a fio com a ajuda do próprio presidente, ficou para o próximo governo. Cinza é pouco para descrever nossa situação.
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University