A marcha do petismo ilustra um daqueles casos típicos de transformismo, quando um partido ou agrupamento, uma vez no poder, abandona suas bandeiras progressistas iniciais e assume posicionamentos conservadores, se não reacionários. Após quase uma década e meia no poder central, foi o que a prática petista, cada vez mais autoritária, deu a entender. Nesse sentido, podemos até nos perguntar se o petismo e alguns aliados seus não podem ser encarados como uma variante do fascismo, movimento autoritário surgido na Itália no fim da Primeira Guerra Mundial. Ou será preciso recorrer uma vez mais à boa e velha noção de populismo latino-americano para entender a trajetória do Partido dos Trabalhadores? Tendemos a considerar que o bloco capitaneado pelo petismo estivesse pelo menos a um passo do fascismo, o que não exclui naturalmente que tenha tido entre seus componentes elementos do populismo.
Com efeito, chama a atenção o fato de que alguns dos componentes estruturais do fascismo estão presentes igualmente na cultura petista ou do chamado lulopetismo. Corporativismo, conluio criminoso com o grande capital, autoritarismo político, manipulação das massas pelos sentimentos e emoções, venda de ilusões, recurso à demagogia barata diante das demandas vindas dos setores populares, instrumentalização dos sindicatos, política de apelo nacionalista cada vez que uma dificuldade séria se apresenta, aparelhamento do Estado, linguagem incitando à violência, corrupção desenfreada e tentativas de estabelecer o chamado diálogo direto com as massas por intermédio de um chefe carismático — eis em que se assenta o petismo. E só para refrescar a memória, o grande ideólogo do fascismo, o italiano Benito Mussolini, o Duce, fez parte de sua carreira política na esquerda.
O petismo, historicamente, sempre defendeu um ideário autoritário, de exclusão do outro da política. É a tal postura do “nós contra eles”. Dos puros contra os impuros. Alguns dos dirigentes petistas mais proeminentes sempre acusaram os membros dos outros partidos de fazerem o que eles mesmos fizeram depois, surpreendendo a Nação. Durante várias campanhas eleitorais, petistas acusavam seus adversários de proporem a privatização da Petrobrás — e promoveram sem dúvida a pior das privatizações, ou seja, o assalto aos cofres da nossa maior empresa para atender aos interesses de uma entidade privada, como é o caso de um partido político. O juiz Sérgio Moro, da Operação Lava Jato, falou diretamente na existência de um “grupo criminoso estruturado e sofisticado” atuando no desvio de dinheiro público.
No tocante ao aparelhamento do Estado, a performance petista só é comparável, em termos de Brasil, ao Estado Novo de Vargas e à Ditadura de 64. Basta citar as dezenas de milhares de nomeações que promoveu país afora. Era uma tentativa de perpetuação no poder como em outras fases autoritárias da nossa História recente. E como lembrou com muita razão Cristovam Buarque, defender o Estado não significa colocá-lo a serviço dos “funcionários das estatais”, numa espécie de “estatização neoliberal”. Pelo contrário, implica ampliar sua capacidade de administração e intervenção públicas.
E o que dizer dos arroubos nacionalistas que volta e meia acometem o petismo? Toda vez que se confronta com uma dificuldade intransponível, essa corrente política grita por socorro: isto é, se escora no pré-sal, no golpe imperialista e por aí vamos, em um bolivarianismo primário (e talvez estejamos aqui cometendo um pleonasmo).
Sabemos que as atitudes racionais não estão muito em alta na política hoje. No plano das tiradas emocionais, o petismo tampouco trai sua dívida para com um certo autoritarismo. As declarações de alguns de seus dirigentes ao longo do processo de impeachment foram totalmente movidas a emoção, com insistentes lembranças por parte da ex-Presidente afastada Dilma Rousseff, por exemplo, da prisão que sofreu durante o regime militar ou mesmo da doença que teve de encarar, colocando-a frente a frente com a morte, segundo ela. O que aconteceu com a ex-Presidente Dilma Rousseff foi duro — mas não é preciso que seja lembrado a todo instante. Afinal, com todo o respeito, muitas outras pessoas também passaram — ou ainda passam — por situações duríssimas na vida. O discurso do ex-Presidente Lula da Silva na sede nacional do Partido dos Trabalhadores, em 25 de setembro de último, um dia após ser denunciado pelo Ministério Público Federal à Operação Lava Jato, foi na mesma direção emocional daquele da ex-Presidente Dilma Rousseff.
E aqui abordamos a questão do carisma pessoal, de que tão bem se vale o ex-Presidente Lula da Silva, com não menos insistentes referências à sua infância de menino pobre do Nordeste, de filho do povo. Alguém com a cara do Brasil atingia finalmente ao mais alto cargo da República, algo que nunca acontecera na História deste país. Isso foi apresentado a todos nós como se o povo tivesse finalmente alcançado o poder. O indivíduo era a massa — quase uma versão em sinal trocado do l´Etat c´est moi do Absolutismo. E a identificação do partido com o seu chefe passou a ser total, a ponto de podermos falar hoje em lulopetismo, conforme destacamos acima.
No decorrer do processo de impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff, chegou-se a justificar o recurso aos créditos suplementares — sem a devida autorização do Congresso, como determinava a Constituição Federal — em nome da manutenção do programa Bolsa Família, do auxílio aos pobres. Com um detalhe altamente significativo: um deputado revelou, com base nos próprios números divulgados pelo Governo Dilma, que essa verba representava apenas 3% do total dos recursos arrolados pela administração federal para justificar os tais créditos. O recurso aos pobres — algo de forte conotação religiosa, elevado aqui quase a um conceito de corte sociológico —, e não os trabalhadores, como até alguns petistas salientaram, foram se configurando como o alvo político preferencial do partido.
Se fôssemos nos pautar exclusivamente pela política latino-americana, talvez seja o caso de considerar que o modelo justicialista de Juan Domingo Perón e dos descamisados argentinos era aquele que mais se aproximava da prática do petismo. E se quisermos nos apoiar ainda no exemplo argentino, seria muito mais interessante para a nossa democracia beber na fonte da Unión Democrática, frente política que fazia oposição a esse mesmo peronismo, reunindo comunistas, socialistas, os radicais da UCR e os liberais em 1946.
A coerência em relação às práticas autoritárias tampouco nega fogo quando o assunto é corporativismo. Sindicalistas muitas vezes comprometidos com o projeto petista deflagraram greves cujo centro era o ganho salarial imediato para uma determinada categoria profissional, em detrimento do interesse mais geral da comunidade ou do conjunto dos trabalhadores. Muitos ainda devem se lembrar dos grevistas que ameaçaram desligar os aparelhos nas unidades de tratamento intensivo de alguns hospitais de Pernambuco, gritando slogans despropositados contra o Governo Arraes. Ou de um chefe sindical ameaçando invadir — diante da própria ex-Presidente Dilma Rousseff, no próprio Palácio do Planalto, em primeiro de abril de 2016 — residências e gabinetes de parlamentares.
Destacaríamos ainda que a ex-Presidente afastada tentou desqualificar o tempo todo o processo de impeachment, alegando que tivera 54 milhões de votos. Uma vez mais estamos diante de um grave equívoco, para dizer o mínimo. Por vários motivos. Primeiro, a ex-Presidente não obteve esses votos sozinha — Michel Temer compôs a chapa com ela; e não era nem de longe o candidato das oposições, ao que consta. E nunca é demais lembrar que o PMDB é o principal partido do país, com grande penetração mas pequenas e médias cidades, ajudando de forma significativa a eleger a então candidata do PT. Segundo: os congressistas que a afastaram do poder também foram eleitos pelo povo — e a ex-Presidente Dilma Rousseff, sabe-se lá por que motivo, parece ter se esquecido disso. Terceiro: a representatividade do Congresso é a mesma do Executivo, já que emana igualmente das normas eleitorais da Democracia brasileira. Quarto: curiosamente, como observou o jornalista Zuenir Ventura em artigo no jornal O Globo, a ex-Presidente afastada, que tanto criticou o suposto golpe de Estado promovido contra sua gestão, se esqueceu de rechaçar o “fatiamento” da votação do impeachment, o qual a possibilitaria manter seus direitos políticos intactos. Por uma questão de coerência, deveria recusado o tal “fatiamento”. Quinto: os juízes do impeachment julgaram apenas as ações que a ex-Presidente realizou no exercício do seu Governo — e as consideraram criminosas, por sinal. Em nenhum momento eles questionaram o número de votos que obteve ou sequer a forma como os obteve — uma atribuição do Tribunal Superior Eleitoral, que ainda vai julgar as contas da sua campanha de 2014. Somente no Absolutismo e nas ditaduras fascistas ou populistas é que o “príncipe” não é submetido ao império das leis.
O lulopetismo também cometeria graves equívocos no que tange a seu relacionamento com o grande capital financeiro. Segundo o próprio ex-Presidente Lula da Silva, nunca os bancos ganharam tanto dinheiro como nos seus dois governos (2003-2006 e 2007-2010). Isso, para não aludirmos aos desacertos que promoveram junto aos bilionários fundos de pensão (nos primeiros dias de setembro, os jornais divulgaram que o déficit atuarial atingia 46 bilhões de reais nos fundos da Caixa Econômica, dos Correios, do Banco do Brasil e da própria Petrobrás). E se formos entrar no terreno igualmente pantanoso do chamado mensalão — ou da compra de apoio parlamentar para a formação de uma base política dócil aos interesses do PT, compra essa que condenou à prisão membros destacados do Governo Lula, no primeiro grande escândalo da sua gestão —, constataremos que sua política subordinou sistematicamente o interesse coletivo ao privado, o Estado perdendo parte de sua dimensão pública. Patrimonialismo é isso aí — e em caráter quase puro. Não por acaso, a Lava Jato prendeu mais de cem pessoas em dois anos e meio de atuação, condenando mais de meia centena delas. E tudo indica que vem muito mais por aí até setembro de 2017, novo prazo dado para suas averiguações. Seguindo os preceitos de Maquiavel, o PT imaginou que os fins justificavam os meios. Só que os fins se foram e ficaram apenas os meios — e esses eram em boa medida autoritários e marcados por práticas de corrupção. Shakespeare chegou a ser cruel quanto aos abusos que se fazem em torno da ética: “a honestidade é a forma mais refinada de empulhação”.
E aqui cabe uma observação de corte mais geral: determinadas práticas da política brasileira até lembram, pelo seu refinamento, o modus operandi de organizações mafiosas. Ocorre que os agrupamentos que possuem um pé no autoritarismo têm um inegável viés marginal, uma atração irresistível pelo crime e não é um mero acaso se tantos delinquentes se sentem atraídos por determinadas ações. Quem não respeita a lei geral costuma fazer a sua própria lei. A Alemanha do falecido Adolf Hitler chegou a ser pródiga nessa matéria e muitos chefes do Partido Nazista vieram do chamado lumpenproletariat. Os marginais não têm adversários: eles têm inimigos. E inimigo tem de ser liquidado. O confronto é tudo e o diálogo nada. A lógica da negociação e da conversa, esta sim, é que emana da prática política propriamente. Fato muito preocupante — e sem dúvida estimulado pelo clima reinante na política e na sociedade brasileiras — foi a irrupção, nas eleições municipais de 2016, do crime organizado na cena política, promovendo atentados que aterrorizaram algumas regiões do país e custaram a vida a muitos candidatos.
A lógica do autoritarismo é, portanto, aquela da terra arrasada. E os petistas, em particular, sempre tiveram dificuldades em entender ou assimilar as instituições da Democracia. Os fatos não desmentem isso, ao contrário. Quando da ida das oposições ao Colégio Eleitoral, em 1984, os petistas chegaram a expulsar de seus quadros os parlamentares que votaram com o oposicionista Tancredo Neves contra Paulo Maluf, candidato da base do regime ditatorial. Aparentemente, para uma grande parte ao menos dos petistas, era indiferente o país continuar ou não vivendo sob uma ditadura militar. Na visão de alguns, talvez porque o PT tenha sido legalizado por ela, contrariamente ao que ocorrera com o PCB, o PC do B e o PSB, que tiveram de aguardar a instalação do regime civil democrático para vislumbrar plenamente a luz do dia. Nesse sentido, os petistas não poderiam mesmo dar tanto valor assim a algo que receberam de bandeja do regime militar moribundo.
Seja como for, o porquê disso é, ainda hoje, motivo de grande controvérsia. Prosseguindo, convém recordar que a chamada Constituição Cidadã não foi bem absorvida pelo PT por ocasião da sua promulgação, em 1988, já que o partido se recusou a participar da sua homologação coletiva. Apesar de ter assinado formalmente a Carta Constitucional, o PT votou contra o texto, infelizmente. Em 2013, o próprio ex-Presidente Lula da Silva reconheceria que se “o Regimento (do PT) fosse aprovado, o país seria ingovernável”. Mais: quando Itamar Franco assumiu a Presidência da República, o petismo simplesmente lançaria a palavra de ordem “Fora, Itamar”, chegando a pedir seu impeachment assim como o de Fernando Henrique Cardoso mais adiante. Em 1993, quando do plebiscito sobre a forma (se regime republicano ou monarquista) e o sistema de Governo (se presidencialista ou parlamentarista), os petistas se posicionaram contrários ao parlamentarismo, apesar de ser esse modelo bem mais avançado do que o presidencialismo.
De outra parte, já que nos referimos mais acima à Alemanha no conturbado período entre guerras, nada mais parecido com a situação que o petismo nos legou do que a triste República de Weimar, que abriria a via ao nacional-socialismo.
Em outras palavras, o petismo abalou a esquerda brasileira. Concordemos ou não com suas propostas, os comunistas iam para a cadeia por subversão — conforme diziam em seu linguajar os defensores das diversas ditaduras que os perseguiram, daquela de Bernardes ao Estado de Novo de Vargas, do regime de Dutra à ditadura militar de 64. Infelizmente, altos dirigentes petistas foram encarcerados por suspeita de corrupção — algo que deixará marcas profundas na História do Brasil, muito tempo após o desaparecimento de cena do lulopetismo. E pensar que muitos desses dirigentes repetiram, durante anos, o slogan “ética na política” até a exaustão. Vai ver que alguns acreditavam mesmo que uma inverdade dita muitas vezes poderia virar a mais sincera das verdades. Como o fazem agora com a narrativa do “golpe”.
A marcha do petismo ilustra um daqueles casos típicos de transformismo, quando um partido ou agrupamento, uma vez no poder, abandona suas bandeiras iniciais e assume posições conservadoras, senão reacionárias. O problema não consiste tanto em saber de onde se vem —, mas para onde se vai.
Em 2016, diante da iminência da derrota de seu projeto de governo, uma resolução da direção do PT publicava um documento onde se podia ler:
Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação.
Trata-se inegavelmente de um projeto autoritário, de corte bolivariano. Tão grave quanto essas tentativas, felizmente abortadas, foi o estrago causado pela corrupção em quase todos os setores da vida nacional. O historiador francês Marc Bloch, ao se debruçar sobre as razões pelas quais os franceses não resistiram à invasão hitlerista, em agosto de 1940, atribuiu o fato à desenfreada corrupção que se abateu sobre a França nos anos anteriores, abalando a autoestima do seu povo. Para os franceses daquela época, os políticos eram todos iguais, a nacionalidade importando pouco… Em tempo: Marc Bloch escreveu seu trabalho entre sua entrada na Resistência, verificada nesse mesmo ano de 1940, e o seu fuzilamento pelo ocupante nazista, dois anos mais tarde. Esse seu livro — A estranha derrota — é muito rico em ensinamentos para todos nós.
A trajetória do PT dá o que pensar. Muitos jovens acreditaram sinceramente nesse projeto partidário e alguns se veem hoje desiludidos com a política. Afinal, como os jornais destacaram, a soma dos votos brancos, nulos e abstenções foi superior aos votos do candidato que ficou em primeiro lugar em nove capitais. Mas desanimar, daqui e dali, não significa desistir. E a esperança deve voltar. É de se lamentar que o PT tenha perdido a oportunidade histórica de mudar o Brasil. Paciência, ainda não foi dessa vez. Mas sociedade alguma vive sem esperança e tampouco sem política. Se o Brasil começa a virar a página da insensatez, podemos notar também que o petismo pode ganhar uma sobrevida por meio de outros movimentos que se põem a trilhar o mesmo caminho seu do início dos anos 80. Corre-se, então, o risco de repetir os equívocos do PT em outras espaços políticos. Uma espécie de petismo sem PT, em suma. Um petismo dessa vez muito mais universitário, comportamental até, do que sindical.
Não foi fácil lidar com essas dificuldades durante todos esses anos. Para que uma outra prática se imponha, é preciso que o campo democrático se mantenha unido em torno de dois objetivos claros e imediatos, a saber: recuperação da economia e manutenção das regras constitucionais. Isso vai muito além das esquerdas. Isto é, superar a gravíssima crise econômica, gerar empregos e aprofundar a democracia representativa são tarefas fundamentais, nacionais. Tarefas árduas, sem dúvida, implicando reformas incontornáveis, tamanho o descalabro que grassa em várias esferas da vida brasileira, da educação à saúde, da segurança ao sistema de transporte. Antonio Gramsci escreveu certa feita que toda a luta da Humanidade implicava a criação de instituições cada vez mais democráticas e que satisfizessem as necessidades de cada um. Esse nos parece ser o caminho. E aqui cabe realçar o protagonismo dos liberais nas diversas frentes que derrotaram todos, mas absolutamente todos, os governos autoritários ou populistas entre nós, do Estado Novo de Vargas à ditadura dos generais e desta ao “Estado Novo do PT” (esta última expressão foi desenvolvida pelo sociólogo Luiz Werneck Vianna, um dos maiores intelectuais brasileiros).
Sabemos todos da força histórica do populismo — e podemos citar a sua adoção na antiga Roma, com sua política de panem et circenses satirizada por Juvenal (o que aliás não impediu as revoltas populares, apesar de tudo, e menos ainda que a velha capital criasse a prática do voto secreto, há quase dois mil e duzentos anos…). Mas há razão para algum otimismo. A consolidação da Democracia em várias partes do mundo, as extraordinárias mutações que se processam no aparelho produtivo das sociedades e a expansão do conhecimento e das pesquisas apontam para o fato de que talvez estejamos às portas de um novo Renascimento. O trabalho por conta própria, o desejo de uma maior autonomia por parte das pessoas, as alterações nas formas de comportamento delas em seu cotidiano, tudo indica uma mudança profunda na nossa maneira de ver o mundo, de estar nesse mundo. Contudo, para que essa mudança se verifique de fato, é preciso também promover — conforme destacou Maquiavel, ao analisar a situação dominante na Itália do seu tempo, o estupendo Cinquecento — o encontro da virtù com a forza, pois até então os fortes não eram virtuosos e os virtuosos não eram fortes. Ontem como hoje, empoderar a virtude parece ser a única maneira de fazer triunfar os valores da Civilização — liberdade, igualdade e fraternidade.
Sim, a experiência histórica e o aprimoramento das ideias ensina e muito. Senão, vejamos. Jacob Boheme era um sapateiro nascido em 1575, na Alemanha. Era também um apaixonado pela filosofia e receberia séculos mais tarde elogios de Georg Hegel. Um filósofo popular, fato raro na Europa do Renascimento. Muito que bem. Um dia, o nosso sapateiro-filósofo percebeu, no seu ateliê, um magnífico raio de luz projetado sobre um fundo sombrio de uma chapa de estanho e concluiu que a luz precisava de obscuridade para resplandecer. Para Jacob Boheme, “uma coisa se opõe a outra não com a intenção de provocar uma hostilidade, mas para que tudo se mova e se manifeste”.
O que queremos dizer com tudo isso, em síntese? Que o Humanismo é uma força considerável do nosso tempo no plano internacional. E suas bases, como na época do seu florescimento, na Itália renascentista, estão assentadas em duas premissas. De um lado, se alicerça na crescente consciência que o indivíduo vai tomando sobre seu papel na sociedade e, de outro, se alimenta da sensação que esse mesmo indivíduo tem de que vive em um mundo extraordinário, passível de ser explorado ad infinitum. Em seu tempo, o filósofo e estadista inglês Francis Bacon entendeu a importância da técnica para o pleno desenvolvimento da sociedade burguesa. E de fato a fábrica virou a unidade produtiva por excelência do modo capitalista. Da mesma forma, o pleno desenvolvimento do mundo atual pressupõe o recurso às tecnologias de ponta, cujo impacto sobre as forças produtivas não para de nos assombrar. É que não há democracia nem desenvolvimento sem o conhecimento.
Hoje, a luta pelo afastamento do homem do trabalho embrutecedor passa pelo incremento da robótica. No plano da base material, as condições estão muito mais maduras para o estabelecimento de uma sociedade sem classes do que em 1917, durante a Revolução Russa, quando não existia a automação. Só perdemos momentaneamente as condições políticas, fazendo-se necessário uma adequação entre a esfera produtiva e aquela da participação coletiva. Provavelmente um novo projeto político global está nascendo diante de nós, incorporando os nossos anseios de paz, de busca por um equilíbrio ambiental efetivo e também integrando propostas que deságuam no fim da exploração dos povos e da opressão de uma pessoa por outra. O grande desafio é saber exatamente qual a cara política que terá essa nova realidade alicerçada nas profundas transformações por que passa a base material da sociedade contemporânea.
Nas últimas décadas, ditaduras desmoronaram — basta pensar na Grécia, em Portugal, na Espanha e em grande parte da América Latina — e inúmeras guerras terminaram — no Vietnã, no Laos, no Camboja, e nas antigas colônias portuguesas da África e em Timor Leste. Evidentemente, persistem situações terríveis em países como Venezuela, Síria e Coreia do Norte. E há uma preocupação crescente com as atitudes aventureiras do líder russo Vladimir Putin. Mas a solidez da Democracia — materializada recentemente pelo avanço do Partido Democrata nas eleições presidenciais dos EUA, em detrimento da candidatura desse inacreditável Donald Trump — permite ainda um certo regozijo.
Tudo indica que a batalha da sociedade brasileira por mais transparência e exercício pleno da cidadania deve continuar se expandindo e se manifestando. A proposta que poderíamos chamar de hobbesiana de submissão do homem ao Estado está se esgotando rapidamente. A Revolução Burguesa — isto é, aquela que garante que todos sejam iguais perante a Lei — ganhou as ruas do Brasil em junho de 2013 e depois como que se completou com o apoio decisivo dessa notável operação Lava Jato e do próprio Congresso Nacional, ao consagrar o afastamento de Dilma Dousseff. Além disso, a vitória eleitoral das forças do campo democrático nas principais cidades do país, no final de 2016, também demonstram que o povo, em centenas de cidades, não deseja mais ser governado pelo sistema político do lulopetismo, derrotando as ameças autoritárias. Sopram ventos democráticos, apesar de alguns impasses, como no Rio de Janeiro (mesmo assim, os partidos mais identificados com o campo democrático, que infelizmente se apresentaram divididos, tiveram mais votos do que os dois primeiros colocados vistos separadamente).
Democracia como meio e fim, ampliação da autonomia e dos diretos individuais, transparência e gestão compartilhada das riquezas, inovações tecnológicas incidindo sobre o modo de vida aqui e agora, luta pela diminuição do fosso entre a ciência e a população, oportunidades iguais para todos estão entrando na ordem do dia entre nós. Já não era sem tempo.
Aprendemos com Armênio Guedes que o conceito de esquerda não é fixo e que o que era considerado esquerda lá atrás não o é mais hoje. Na verdade, ampliou-se talvez o espaço para uma política de novo tipo, ao mesmo tempo em que se verificou um certo cansaço em torno de posicionamentos demagógicos. As redes sociais hoje são praticamente um novo poder. Ernst Bloch chegava a falar em “escuridão do momento vivido”, ao tentar entender uma determinada conjuntura. Realmente, não é nada fácil. Porém, é inegável que o cerco agora vai se fechando com uma tripla vitória das forças democráticas: política (impeachment), jurídica (Lava Jato) e eleitoral (com o grande passo dado nas eleições municipais de 2016, quando as forças que se juntaram para apoiar o impeachment de Dilma Rousseff foram as grandes vencedoras). Acabou o tempo das ilusões com propostas que quase nunca saíram do papel. Adeus, populismo — aos vencedores, a democracia.
Ivan Alves Filho é historiador.
Fonte: acessa.com