José de Souza Martins: Capitu traiu?

É curioso que, em relação a uma das mais importantes obras da literatura brasileira, "Dom Casmurro", de Machado de Assis, com estranha frequência leitores empaquem na figura de Capitu. Ao término do livro fica em muitos a dúvida: Capitu traiu ou não traiu Bentinho com Escobar, amigo de ambos? O filho, que tem a cara do amigo e não a do presumível pai, é filho de quem?
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É curioso que, em relação a uma das mais importantes obras da literatura brasileira, “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, com estranha frequência leitores empaquem na figura de Capitu. Ao término do livro fica em muitos a dúvida: Capitu traiu ou não traiu Bentinho com Escobar, amigo de ambos? O filho, que tem a cara do amigo e não a do presumível pai, é filho de quem?

Em seminário recente sobre esse livro, no Clube de Leitura da Academia Paulista de Letras, aberto ao público, que ali se reúne toda última quinta-feira do mês, às 18h30, o escritor Luiz Carlos Lisboa chamou a atenção para um julgamento simbólico de Capitu, presidido por um ministro do STF, com a participação de pessoas eminentes. Capitu foi absolvida. Lisboa, erudito autor, sublinhou a distorção que semelhante procedimento representa em face da riqueza própria e característica da obra de Machado.

De fato, a querela em torno da figura de Capitu indica, entre nós, a deformante força da leitura fundamentalista, capturada por uma mentalidade bem nossa, polarizada e binária. Mentalidade que é a grande personagem da sociedade e da política brasileiras até hoje. Ao ler Machado de Assis desse modo redutivo expomos nossos defeitos de compreensão do que somos.

Nossa tendência é a de não ver nem interrogar quem não está no centro do palco dos acontecimentos, os aparentemente meros coadjuvantes, sem os quais as figuras centrais nem podem existir num mundo em que cada um não é mais do que construção da reciprocidade de relacionamentos.

Temos mais dificuldade ainda para perceber e compreender os subterrâneos implícitos das relações sociais, o inconsciente coletivo e mesmo o inconsciente pessoal, a alienação que nos oculta de nós mesmos, as manipulações de que somos vítimas todos os dias e todas as horas na afirmação da trama de interesses e de poderes.

Desconhecemos as invisibilidades que, com o advento da sociedade moderna e de seu sistema de ocultações, já não são os fantasmas da sociedade tradicional. São agentes ativos da vida moderna.

Machado de Assis, preto de ascendência, teve a biografia estratégica de uma socialização limítrofe, entre dois lados, o da sociedade que acabava e o da sociedade que começava. Era o que lhe permitia ver mais e melhor as mudanças e transformações sociais.

Em 1881, em “O Alienista”, ele já havia compreendido o abismo imenso que se abria entre Simão Bacamarte, educado na Europa e formado num padrão avançado da medicina, e a interiorana Itaguaí. Na volta ao Brasil, é claro que sua moderna psicologia médica torna-o postiço em relação à sua própria sociedade. Leva-o a ver em todos os habitantes da localidade sinais de loucura, desencaixados seres humanos dos padrões da modernidade que ele supunha representar, fingindo sem o saber.

No final, só ele fica fora do manicômio. Está aí a alienação do alienista, o que enquadra quase todos os outros e só tardiamente enquadra a si mesmo, porque acima da lei e da ordem, do verdadeiro e do falso. A modernidade só subsiste na cultura da mentira não sabida. Mentir e fingir tornaram-se técnicas sociais de sobrevivência. Estamos vendo isso nestes dias. E não é ficção.

“Dom Casmurro” desdobra essa consciência machadiana de que o Brasil mudava, mas mudava nos subterrâneos da consciência social, nas invisibilidades do real. Pela época da publicação de “Dom Casmurro”, o país atravessava os momentos mais dramáticos da transição social e política. A escravidão recém terminara, a República postiça fora proclamada. Quase se pode dizer que proclamada pelo próprio Simão Bacamarte.

Não é outra coisa que nos conta a Guerra de Canudos (1896-1897), a República de ficção vendo em pobres moradores do sertão da Bahia subversivos da velha ordem porque não se encaixavam na nova ordem da ficção republicana de cidade grande. A lesão dos parcos direitos dos brasileiros e o enquadramento dos frágeis continuam sendo o grande instrumento da dominação política que nos aprisiona.

Protegido pelos valores ambivalentes do subúrbio, Bentinho também se divide. Condenado por uma promessa da mãe de que seria padre, apaixona-se, na adolescência, pela vizinha, Capitu, com quem se casa depois de passar pelo seminário e de libertar-se da autoridade materna. A suspeita de que Capitu o traíra com o amigo o persegue. O casamento se desfaz no distanciamento que os separa um do outro e do filho.

O fato é que Capitu é irreal, a figuração do medo, próprio da modernidade que desembarcava no porto do Rio de Janeiro. É inútil julgá-la como é inútil procurar a traição numa personagem de ficção. Fomos traídos pela história, que nos impôs ser o Bentinho que somos e nos entrega à tutela de quem não é quem supomos.

* José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).

 

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