Álvaro José Silva, escritor e jornalista*, especial para a revista Política Democrática online (50ª edição: dezembro/2022)
Não me lembro bem das circunstâncias, mas um dia estava num ônibus que passaria pelo Pacaembu. Havia uma aglomeração em torno da mulher negra, vestida com o uniforme do Corinthians e que estava indo para o estádio onde jogariam seu time e o Santos. O Santos de Pelé.
Conversa daqui, conversa dali, e veio à tona o “tabu”. O Corinthians ficou 11 anos sem vencer o Santos, quase tudo por obra e graça “dele”, como falavam todos, inclusive Eliza, a torcedora símbolo. Perguntaram a ela se o “tabu” cairia naquele dia. “Acho que sim”, respondeu. E se Pelé um dia jogaria pelo Corinthians. “Quando estiver veterano”, apostou. Errou em ambas as previsões e desembarcou logo em seguida no ponto da Praça Charles Muller. O Rei do Futebol jamais jogou no Corinthians e o “tabu” caiu um ou dois anos depois, quando o Santos perdeu por 2 a 0 no mesmo Pacaembu. No dia seguinte a manchete em letras garrafais do jornal Gazeta Esportiva era: “Alegria, acabou o tabu”.
Acho que Eliza viu esse jogo. Não posso afirmar, mas ela ia a todos. Eu não pude ir porque o advogado amigo de papai que me levava chegou muito tarde e não havia mais lugar no estádio. Voltamos correndo para casa e vimos o clássico na TV pois a Federação Paulista de Futebol liberou a transmissão da TV Record ao vivo para evitar qualquer tipo de confusão. Eu, corintiano sempre apaixonado, vi o segundo tempo dos gols de Paulo Borges e Flávio com lágrimas nos olhos. Acabou o tabu!
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Era assim que o futebol vivia ainda nas décadas de 1960/70. Gravitando em torno do Santos e de Pelé. E os jogos entre os chamados grandes lotavam os estádios quando aconteciam. Quase invariavelmente os santistas eram favoritos. Na rua onde eu morava, no bairro da Aclimação, São Paulo, éramos vizinhos de uma família de italianos. Luiz, o filho mais velho do fabricante de estátuas de alabastro era, claro, palmeirense. O irmão mais novo, Ricardinho, não. Contra a vontade da família toda torcia pelo Santos de Pelé. E isso acontecia com milhares de outros garotos em São Paulo e inúmeros outros lugares do Brasil e até mesmo do exterior já naquela época.
Antes do surgimento do maior jogador da história, o Santos era um clube médio, de um balneário muito procurado. Com Pelé, ele ganhou uma projeção nunca antes imaginada por ninguém. Afinal, era o endereço de Pelé e seus súditos: virou grande entre os grandes e começou a conquistar títulos em profusão. Também se tornou dono de uma das maiores torcidas de São Paulo, com adeptos apaixonados espalhados pelo Brasil todo e pelo exterior também. Eram os torcedores de Pelé, os admiradores do Rei que, quando vestia a camisa da Seleção Brasileira acabava reverenciado em todos os lugares. A marca Santos se tornou mais perene que a do Botafogo de Garrincha. E os dois viveram mais ou menos na mesma época.
O que Pelé tinha e os outros, não? Ele simplesmente era completo. Passava a bola, armava jogadas, chutava, dava assistência, cabeceava, cobrava faltas, escanteios, batia pênaltis, orientava os mais novos e até os mais velhos, discutia tática de jogo até com os técnicos. Sempre com genialidade. Em consequência disso tudo, tornou-se um grande conquistador de mulheres. Ia encerrar a carreira no Santos, mas não conseguiu resistir a uma proposta financeiramente imensa do New York Cosmos. Foi embora para tornar o futebol popular nas terras do basquete, do rugby, do beisebol e de outras modalidades meio estranhas a nós, os brasileiros.
Há uma diferença abissal entre Pelé e os jogadores de sua época e os atuais. E não apenas em termos de qualidade técnica, mas também em conscientização sobre o valor que cada um deve ter e dedicar ao exercício da atividade. Pelé jogou na época de Coutinho, Mengálvio, Pepe, Dorval, Zito e mais craques. E não apenas os do Santos, mas também Leivinha, Dudu, Ademir da Guia, Dino, Rivelino, Flávio e muitos outros. Tantos que a gente se esquece e nem tem espaço para falar de todos eles. Cito uma diferença fundamental: eram pessoas que vendiam sua arte despida de tudo o mais, menos os uniformes de jogo. Não eram árvores de falso Natal cobertas de tatuagens de cima abaixo. E nem aproveitavam os jogos de Copas do Mundo para saborear filés com ouro nos intervalos de uma para outra partida.
A exemplo de Neymar, Pelé tomava muitos trancos. Mas devolvia. Ao longo da carreira eu o vi nos estádios – sim, eu o vi ao vivo! – fazendo sinal de “aguarde o troco” para o adversário que o havia agredido. E não era de ficar caído no chão, rolando como uma bola. Levantava-se imediatamente como mola. Na Copa do Mundo de 1970, no México, atrasou um pique para esperar o adversário uruguaio que o estava caçando em campo. Deu-lhe uma cotovelada tão forte na cara que quase arrancou a cabeça do sujeito. Procópio, jogador do Cruzeiro, teve a perna fraturada num revide de Pelé. Giesemann, jogador da Alemanha, da mesma forma. Então os adversários sabiam que era perigoso caçar Pelé em campo. Por consequência, tentavam parar aquela máquina de jogar com futebol limpo. E ele retribuía da mesma maneira.
A gente pode argumentar: então o nosso Rei era violento? Sim, quando necessário. O gênio da bola estava longe de atuar como um monge budista. Num passado mais recente, quem chegou mais próximo da excelência dele foram jogadores como Zico e Sócrates, para ficarmos em apenas dois exemplos. Ambos eram virtuoses em sua profissão. Sócrates, tanto na bola quanto no copo, mas ninguém ligava para isso porque o retorno em campo estava garantido. Ironia do destino: nenhum dos dois foi campeão do mundo.
Mas não por ironia, Neymar também não será. O futebol que ele joga, e muitos dos nossos craques atuais vivem, muito mais de autopromoção do que de responsabilidade profissional. Querem ser astros sem história. Eu disse no início que Pelé gostava muito de mulher. Mas ele não se envolvia em escândalos, ao que consta jamais cometeu violências e, por consequência, nunca enfrentou um problema nessa área. Muito parecido com Sócrates, que mantinha a vida privada como coisa somente sua. Diferente de Zico, a vida toda casado com sua Sandra e somente com ela.
Vini Júnior, muito novo, talvez viva no futebol tempo suficiente para desembarcar no Brasil com o troféu da Copa do Mundo. Mas terá que rever seus princípios, sua maneira de viver e de encarar a profissão. Não basta apenas saber jogar para chegar ao Olimpo. O Palmeiras tem hoje Endrich, menino menor de idade e com um futebol fabuloso, tanto que já foi negociado para a Europa. Seria vital se as pessoas conseguissem enfiar na cabeça dele que a receita do sucesso passa por Pelé e não por Neymar. Também seria de bom tom explicar isso a Raphinha e a Richarlison, embora esse último seja apenas um rompedor. Problema nenhum porque Vavá também era e foi campeão do mundo pelo Brasil.
Nós ainda temos muito potencial, mas ele está sendo perdido por causa do descompromisso dos jogadores com a responsabilidade que o futebol cobra de seus profissionais. E isso hoje tem muito a ver também com os treinadores, já que eles aceitam situações que no passado seriam impensáveis. Dizem: fora de campo a vida dos jogadores é problema deles. Não é.
Pelé, muito jovem, teve a oportunidade de jogar uma vez pelo Vasco, seu time do coração na infância, antes de ser tomado de amores pelo Santos. Interessante, mas o clube do bairro carioca de São Januário também tinha uma mulher, Dulce Rosalina, como sua torcedora símbolo. E, ironia do destino, foi no Vasco do goleiro Andrada que o Rei marcou seu milésimo gol, numa cobrança de pênalti, em pleno Maracanã que o reverenciava.
Veja, a seguir, galeria:
Mas quem não fazia isso era o goleiro Mão de Onça, do Juventus. Nascido Durval de Moraes em 1931 e ainda vivo hoje, negro que chegava a brilhar, tinha um medo paranoico de Pelé. Quando jogava contra seu maior algoz, começava a gritar com os companheiros, tão logo o jogo começava: “Segura o Negão! Porrada no Negão! Cerquem o Negão! Marquem o Negão!” e ia por aí. Invariavelmente o Negão vencia e o pobre Mão de Onça ia buscar a bola no fundo das redes. Hoje há uma estátua de Pelé no estadinho do clube no bairro da Mooca, na Rua Javari, em São Paulo.
Mas não por causa de seu goleiro. É que foi lá, em 2 de agosto de 1959, que o Rei marcou aquele que ele próprio considerava seu maior gol. Recebeu a bola na entrada da área, deu um chapéu no primeiro adversário, em seguida deu outro no segundo e, com Mão de Onça no ar, saltando para evitar o gol, ainda teve como dar um terceiro nele e depois tocar de cabeça para o gol diante de incrédulos torcedores que se levantaram para aplaudir de pé.
Quando ele jogava bem não dava para segurar o Negão!
Sobre o autor
*Álvaro José dos Santos Silva é escritor e jornalista.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2022 (50ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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