Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
O velho folclorista capixaba Hermógenes Lima Fonseca, nascido em 12 de dezembro de 1916, no Sítio José Alves, em Palmeiras, distrito de Itaúnas, Conceição da Barra, viveu até 1996, quando faleceu em Vila Velha, aos pés do Convento da Penha, um dos mais antigos no Brasil. Formado em direito, era contador e pesquisador da cultura de seu estado, que sofre muita influência de baianos e mineiros, além da forte atração dos cariocas, que consagraram Roberto Carlos, Nara Leão, Sérgio Sampaio e Rubem Braga. Hermógenes dizia que “o povo astucia as coisas”, frase na qual se inspira essa reflexão dominical.
Nos dicionários, astúcia é o mesmo que esperteza ou a habilidade da pessoa que não se deixa enganar com facilidade. Na política, porém, quase sempre tem um significado negativo, porque é uma das características dos políticos, quando atuam de forma dissimulada para atingir seus objetivos e enganar o eleitor. Há uma grande diferença entre a astúcia do povo e astúcia dos políticos. A primeira se baseia no bom-senso. Já a astúcia dos políticos recorre ao senso comum para atingir objetivos obscuros. É mais ou menos o que está acontecendo com a PEC da Eleição, que está em discussão na Câmara, um pacote de bondades destinado à população de mais baixa renda, com o claro propósito de favorecer a reeleição do presidente Jair Bolsonaro.
Como se sabe, o pacote foi aprovado pelo Senado com apenas o voto contrário do senador José Serra (PSDB-SP), após estranho acordão de bastidores entre o Palácio do Planalto, o Centrão e a oposição. Esse acordo deixou de ser uma pulga atrás da orelha, após ficarmos sabendo, pelo senador Marcos Do Val (Podemos-ES), que o “orçamento secreto” no Senado garantiu verbas bilionárias para os senadores que apoiaram a eleição do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O próprio Do Val recebeu R$ 50 milhões em verbas para seu estado, mas o montante de recursos distribuídos entre os pares chegaria a R$ 2,3 bilhões em emendas orçamentárias.
Na Câmara, a votação da PEC também está sendo azeitada pelo presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), com a liberação de recursos do orçamento secreto. Como não se fechou o balcão de negócios, a proposta ainda não foi aprovada, faltou quórum na quarta-feira passada. É difícil saber a exata relação entre o altruísmo e o egoísmo das excelências, ou seja, quais parlamentares estão votando uma emenda à Constituição que viola a Lei de Responsabilidade Fiscal e a legislação eleitoral, para mitigar o sofrimento causado pela inflação, ou se também estão tendo sua reeleição anabolizada pelo orçamento secreto.
Estelionato eleitoral
Com certeza, os deputados da base do governo estão matando esses dois coelhos com uma cajadada só, ou seja, agradam o eleitor de baixa renda com o aumento do Auxílio Brasil e cevam as suas bases eleitorais com as verbas do Orçamento. Os da oposição, constrangidos em sua maioria, estão votando para salvar a pele na eleição, sob chantagem: um eventual voto contrário às medidas populistas será usado pelos adversários para inviabilizar a sua própria base eleitoral. Mas pode haver mais coisas entre o céu e a terra do que os aviões de carreira, como diria o Barão de Itararé.
Lembro-me da Constituinte da fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro, em 1975, quando era um jovem repórter do Diário de Notícias. O interventor Faria Lima, nomeado pelo presidente Ernesto Geisel, enfrentava uma oposição amplamente majoritária, pois o MDB elegera a maioria dos deputados nos dois estados. Em razão disso, indicou um aliado do ex-governador Chagas Freitas (MDB) para relator do projeto de Constituição, o que provocou a renúncia da líder do governo, deputada Sandra Cavalcanti (Arena). Indaguei ao deputado Cláudio Moacir, o líder do MDB, se ele seria o novo líder do governo. A resposta foi malandra: “não, vou usar a tática do bigode: na boca, mas do lado de fora”. O MDB era oposição, mas negociava cargos e verbas em troca de apoio ao interventor.
Governo e oposição fazem cálculos e projeções sobre o impacto da PEC nas eleições presidenciais. O presidente Jair Bolsonaro e o Centrão apostam suas fichas nas medidas que serão aprovadas, inclusive com a substituição dos cartões do Bolsa Família, uma marca do governo Lula, pelo novo cartão do Auxílio Brasil. Ou seja, dinheiro vivo nas mãos do eleitor a partir de agosto. A oposição, principalmente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acredita que esses recursos, liberados em cima da eleição, não terão tanto impacto eleitoral e seu efeito geral sobre a economia seria neutralizado pela inflação. Os analistas econômicos, porém, são unânimes em dizer que o rombo fiscal vai desorganizar a economia e que o pacote de bondades será um estelionato eleitoral.
Por experiência vivida, não acredito em eleição ganha de véspera. Porque ninguém leva o eleitor para votar pelo nariz. Há cinco candidatos na pista, Lula (PT) disparado em primeiro, Bolsonaro (PL) em segundo, Ciro Gomes (PDT) em terceiro, Simone Tebet (MDB) e André Janones (Avante) empatados na quarta posição. O imponderável da eleição é voto secreto do eleitor, cuja astúcia não deve ser subestimada. Se houver muita bagunça na eleição, com ameaças à democracia, o bom-senso popular pode decidir o pleito no primeiro turno.