Eloísa Machado de Almeida / Folha de S. Paulo
Decisão liminar do ministro Raul Araújo considerou que a manifestação de artistas em festival de música criticando Jair Bolsonaro e manifestando apreço por Lula seria um tipo de ilícito eleitoral, uma propaganda eleitoral antecipada, e proibiu as mesmas no restante do festival, sob pena de multa.
Muitas das regras eleitorais têm por objetivo garantir alguma igualdade de condições entre candidaturas.
É a partir da noção de uma competição justa que o resultado das eleições é legitimado.
Por exemplo, se candidatos esconderam gastos de campanha (caixa dois), usaram a máquina pública a seu favor ou seu tempo para depreciar adversários, a lei diz que eles estariam se beneficiando de condições que os colocariam em posição de vantagem frente aos demais na corrida eleitoral.
As regras relativas à vedação da campanha antecipada compartilham do mesmo propósito: na competição por votos, nenhum dos candidatos pode sair na frente.
Absolutamente nada disso estava em questão no festival de música.
Gritar “Fora, Bolsonaro!”, muito além do criticar sua candidatura, é exercício do direito ao protesto contra um presidente que está no cargo, em exercício. Não tem nada, absolutamente nada, com propaganda antecipada.
Da mesma forma, manifestação individual de apoio a um candidato é protegida pelo direito que todos nós temos de nos manifestarmos e nos posicionarmos politicamente.
Direito ao protesto e à manifestação política estão amparados pela Constituição e são centrais à democracia.
Não por outro motivo, o Código Eleitoral deixou bem claro que manifestações políticas e artísticas, que não impliquem pedido explícito de voto ou sejam feitas em eventos políticos eleitorais animados por shows, não configuram nenhum ilícito eleitoral.
Porém, mesmo diante da clareza da Constituição e o Código Eleitoral, a decisão monocrática do ministro Raul Araújo determinou “proibição legal, vedando a realização ou manifestação de propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido político por parte dos músicos e grupos músicas que se apresentem no festival”, sob pena de multa.
O ministro entendeu que “os artistas e cantores referidos que se apresentaram no evento musical em testilha, além de destilar comentários elogiosos ao possível candidato, pediram expressamente que a plateia presente exercesse o sufrágio em seu nome”, ainda que nem o requerente da medida de censura —o PL pelo qual o presidente Bolsonaro tentará a reeleição— tenha afirmado isso em sua representação.
Com isso, a decisão extrapolou os fatos e a causa de pedir indicados na representação.
Ao se afastar da legislação, da Constituição, da interpretação dos tribunais e do processo que regula a prestação jurisdicional eleitoral, a decisão do ministro Raul Araújo se tornou ato de censura. Censura judicial, mas ainda assim, censura.
A censura é vedada em nosso ordenamento jurídico e se torna ainda mais grave quando se dá no âmbito de críticas ao governo.
Criticar livremente um governo, ainda que de forma deseducada, não pode ser proibido por legislação eleitoral, por legislação de segurança nacional, não pode gerar dossiês de monitoramento nem representações criminais de poderosos contra seus críticos.
Não é por acaso que tudo isso tenha acontecido neste governo: está em curso uma retração do espaço cívico e democrático no país, muitas vezes protagonizado pelas instituições que deveriam contê-la.
E é nessa dimensão que a decisão liminar do ministro Raul Araújo se torna ainda mais grave: ela expõe o Tribunal Superior Eleitoral e toda a Justiça Eleitoral a críticas de seletividade, excessiva politização e interferência indevida no jogo político.
Cada decisão monocrática fora do tom será uma armadilha no caminho do TSE.
Seja porque não se cercou de cautelas básicas para assegurar que decisão teria o destinatário correto (erros na identificação da pessoa jurídica responsável pelo festival de música atrasaram a notificação), seja porque artistas assumiram o risco econômico da multa, o fato é que a decisão não surtiu efeitos concretos no último dia do festival de música e foi sonoramente descumprida.
Ruim para o ministro Raul Araújo, péssimo para o tribunal, que tem se esforçado para manter a integridade das eleições e de suas decisões, não obstante ataques orquestrados e organizados por apoiadores do presidente em exercício, Jair Bolsonaro.
A decisão liminar é monocrática e não representa a posição do tribunal como um todo, que deverá se reunir nas próximas sessões para rever os seus termos.
Colegiadamente, os ministros reunidos deverão enfrentar o desafio que o uso de monocráticas traz para o tribunal.
Há formas de sair dessa armadilha: quando o Supremo Tribunal Federal foi desafiado pela crise política e sanitária, reorganizou sua maneira de julgar: passou a decidir rápida, pública e colegiadamente, como pesquisa sobre a atuação do STF no enfrentamento à Covid já demonstrou.
Há, assim, aprendizado institucional para lidar com os desafios do Brasil em crise e o Tribunal Superior Eleitoral deve incorporá-los. Afinal, a quem interessa uma Justiça Eleitoral fragilizada nas eleições de 2022?
*Eloísa Machado de Almeida é professora e coordenadora do Supremo em Pauta FGV Direito SP
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/03/decisoes-individuais-fora-do-tom-sao-armadilha-no-caminho-do-tse.shtml