Bolívar Lamounier / O Estado de S. Paulo
Na terça-feira passada (8/3), com sua habitual competência, o embaixador Rubens Barbosa publicou neste espaço um artigo apontando dramáticas vulnerabilidades do Brasil no tocante ao comércio exterior, a áreas estratégicas e a inovação e segurança.
Com sua vasta bagagem, Rubens Barbosa poderia ter estendido sua análise a mais umas 40 áreas. Não o fez, em parte por falta de espaço, mas em parte também porque sua boa alma não lhe permitiu empurrar os leitores para uma depressão mais profunda do que esta que já estamos vivenciando. Eu gostaria de seguir seu sábio exemplo, mas preciso me ater ao fato de havermos, agora sim, chegado à globalização. Não à globalização com que muitos sonharam, conduzida como opção e mediante critérios nossos. Escusado dizer que estou me referindo à globalização engendrada pelos dois pês (PPS), a pandemia e a agressão russa à Ucrânia. No que se refere ao Brasil, a pandemia já causou um belo estrago em nossas contas fiscais, mas teve o mérito de nos ensinar uma certa humildade, mostrando-nos que, sem o resto do mundo, muitos de nós morreriam por falta de imunizantes. A segunda, movida pelos coturnos, tanques e mísseis russos, reduziu-nos à mais completa impotência.
Putin não é uma novidade. Desde tempos remotos, tivemos lunáticos no governo de grandes potências; seus ancestrais incluem Nero, Calígula, Cômodo e, no século 20, com muito maior brilho, Stalin e Hitler. Novo é o fato de que ele está sentado num enorme arsenal de bombas atômicas e tem cacife para produzir solavancos de monta em toda a economia mundial. Um sinal disso já nos foi dado presenciar no Brasil: o capitão-presidente querendo passar para os índios a fatura dos fertilizantes que imaginar assegurar ad aeternum na Rússia e em Belarus, graças a seus vínculos de fraternidade com Vladimir.
Duro de aguentar é o fato de que não encontraremos muitas razões de regozijo por finalmente estarmos sendo globalizados. Vamos sofrer o que poderíamos nós mesmos ter feito, com iniciativa, coragem e lucidez. Durante ao menos duas décadas tergiversamos o quanto pudemos, papagueando tolices, em vez de nos inserirmos no mundo com base numa estratégia devidamente considerada e na vastidão de recursos com que Deus nos aquinhoou. Agimos como se reconhecer a interdependência já perceptível a olho nu fosse um crime de lesa-pátria. Foi, sejamos francos, por uma irremissível burrice que nos aferramos ao bolorento modelo da economia fechada, quando deveríamos ter optado pela expansão do comércio, pela atração de capitais produtivos e, naturalmente, por uma forma segura de importar as tecnologias de que necessitamos; dos fertilizantes e imunizantes, já falei. O resultado aí está. Em vez de navegarmos em mar calmo, cá estamos, roendo as unhas, conjecturando sobre desastres que cedo ou tarde estarão à nossa espreita, sobre a hipótese de virmos cada vez mais a depender de países cuja história não registra um só dia de democracia e, mais importante, sobre a certeza de que estamos nos condenando a mais uma ou duas gerações de atroz pobreza.
Sem querer me repetir, mas já me repetindo, não podemos passar ao largo das causas internas que nos mantêm nesta condição, como que paralisados pelo calor das lavas expelidas pela erupção do Vesúvio.
A causa mais chocante, porque evidencia nossa insensibilidade, é o atraso na educação, em todos os níveis. É lógico que setores estratégicos e de infraestrutura não avançarão enquanto não nos credenciarmos para mobilizar capitais de grande envergadura, hipótese improvável num país que parece aceitar de bom grado sua condição de pária internacional. Mas a educação não depende de capitais de tal vulto. Até agora, o que fez o atual governo nessa área? O que não temos feito já seria uma encrenca de bom tamanho; na globalização induzida pelos dois pês, salve-se quem puder.
Em seguida, como é óbvio, nosso sistema político. Nesse aspecto, somos um país deveras pitoresco. Somos 212 milhões, mas continuamos pateticamente incapazes de renovar a malta que mais assiduamente frequenta Brasília. Nessa área, conseguimos piorar muito. Salvo pelos que têm como prioridade controlar empregos na administração pública e nas estatais, ou em arrancar nacos do Fundo Partidário, os demais, se bem os entendo, parecem ir lá só para curtir seu instinto gregário. Pode alguém seriamente supor que a atual classe legislativa e os altos escalões do Executivo estão preparados para ver o que nos espera além do horizonte?
Mas, sejamos justos, Brasília não concentra todos os nossos defeitos. Basta lembrar que dentro de alguns meses vamos reviver a teratológica polarização entre dois azes do populismo que se configurou na eleição presidencial de 2018. O resto do quadro é, também, deprimente. Hoje em dia, o que os jornalistas, suponho que a contragosto, chamam de política não passa de uma desagradável série de traições e oportunismos, praticados inclusive por figuras que pouco tempo atrás eram ícones de suas respectivas siglas.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Fonte: O Estado de S. Paulo