Fernando Abrucio / Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A história humana é repleta de eventos paradoxais. Um dos mais comuns é a existência de momentos marcados pela busca do novo, que, ao final, resultam em retrocessos. A Revolução Francesa gerou Napoleão Bonaparte; a Russa, o totalitarismo de Stalin. No Brasil, multidões foram às ruas em junho de 2013 para pedir a renovação da política brasileira. Apostou-se muito no que viria daquele movimento cívico de massas. Porém, os principais grupos surgidos daquele episódio demonstraram ser o inverso do que diziam: só representam o retrocesso de tudo que o país conquistou desde a redemocratização.
Na verdade, nunca nutri grande esperança no discurso presente naquelas jornadas de junho de 2013, especialmente quando ouvia as soluções propostas para os problemas do país. Estava na avenida Paulista no dia 20 de junho, saindo do trabalho, e ouvi grupos gritando: “Sem partido”, frase que me lembrou a Marcha sobre Roma comandada por Mussolini em 1922. Parecia mais com a metáfora do ovo da serpente, para citar o famoso filme de Ingmar Bergman sobre as origens do nazismo. Pressenti tempos sombrios e, infelizmente, eles vieram.
Não se trata de criticar uma parte da agenda de problemas apresentados pelas ruas, como a necessidade de melhorar os serviços públicos, mas sim o ideário vencedor desse processo político. Ele se baseava num discurso agressivo, tanto na forma como no conteúdo, contra a velha política e as instituições sociais mais relevantes, em nome de uma mistura mal combinada de um ultraliberalismo quase infantil com um conservadorismo moral modernizado pela linguagem das redes sociais. Havia um sentimento de superioridade muito grande naquelas lideranças, quase todas muito jovens, que imaginavam que sabiam tudo e que podiam se contrapor aos seus adversários de forma desrespeitosa e pouco democrática.
Passados quase dez anos, as consequências do movimento de junho de 2013 foram a ascensão do bolsonarismo e a perda completa de rumo daqueles que colaboraram para a chegada de Bolsonaro ao poder, mas que depois procuraram se desvencilhar do monstro que criaram. A ignorância histórica de Kim Kataguiri em relação ao nazismo e as frases machistas e preconceituosas de Arthur do Val, o Mamãe Falei, sobre as refugiadas ucranianas são apenas parte desse processo, porque é mais fácil condenar esses episódios grotescos. Mais complicado é entender o caldo de cultura que gerou esse retrocesso político que vai muito além do MBL e que continua com mais força no bolsonarismo.
Vale ressaltar que, embora mais recentemente tenham se colocado em lados opostos do poder, MBL e bolsonaristas são filhos do mesmo movimento que eclodiu em 2013. Mais do que isso: seu modelo mental e de forma de atuação política são muito similares. O que os diferencia mais é que um deles, o bolsonarismo, está no poder e se aliou com aqueles que podem mantê-lo lá às custas da destruição dos cofres públicos brasileiros e das bases republicanas do país: o Centrão. O outro grupo perdeu o poder, mas a maneira histérica como critica e faz oposição a outros governos, como o de João Doria em São Paulo, prenuncia a forma como os bolsonaristas se colocariam contra qualquer outro governante que conquiste o Palácio do Planalto nas próximas eleições.
O entendimento do ideário vencedor das jornadas de junho de 2013 é importante porque ele abarca, em maior ou menor medida, uma série de grupos neoconservadores que ascenderam politicamente nos últimos anos. Cinco elementos principais os caracterizam. O primeiro é o nítido despreparo de suas lideranças, com pouca formação universitária e sem grande destaque em algum campo de saber. Não por acaso uma grande parte deles procurou gurus, sendo o mais famoso o autointitulado filósofo Olavo de Carvalho – que estava mais para mago e astrólogo desbocado. Esse grupo valorizava o autodidatismo na internet e nenhuma dessas lideranças foi capaz de escrever algo sólido sobre os problemas brasileiros.
Não se sabe claramente, para além de frases de efeito, quais soluções propõem para questões complexas do país, como educação, meio ambiente, questões urbanas e desigualdade. Na verdade, preferem o voluntarismo e a tentativa de desconstruir o adversário. Como parte majoritária desse grupo, os que chegaram ao poder no plano federal produziram um governo que é um deserto de ideias na maior parte das políticas públicas. Pior: diante da incapacidade de seus membros, algo nítido pela leitura do currículo de seus ministros, caminham cada vez mais para propostas populistas em aliança com uma elite política oligárquica e patrimonialista. Ou seja: prometeram o futuro e estão entregando o passado, com o coronelismo e tudo mais.
O segundo elemento é o uso de uma estratégia política claramente antidemocrática. A falta de tolerância contra as ideias alheias é marcante, normalmente acompanhada por uma linguagem e ações agressivas. Seus líderes ficaram famosos por tentarem destruir a reputação de várias lideranças políticas e sociais usando o modelo de humilhação e cancelamento das redes sociais, como fizeram com o padre Júlio Lancellotti, que há décadas luta pela população de rua de São Paulo. Qual o conhecimento e o engajamento desses eternos moleques em relação a esse problema?
Quem começou o obscurantismo no plano da cultura não foi o bolsonarista Mario Frias, mas as ações de jovens do MBL. Não se pode esquecer a aliança que fizeram com Eduardo Cunha, então chefe de uma máfia parlamentar e envolvido em vários escândalos desde o governo Collor. Afinal, o que importava era atacar a corrupção dos outros e chegar ao poder. Os ataques ao Supremo também não começaram com a chegada de Bolsonaro ao poder, e a ideia jacobina de que as ruas deveriam substituir as instituições tornou-se um mote desde 2013, algo que os faz parecidos, ironia da história, com os chavistas.
Pouco afeitos às práticas verdadeiramente democráticas, essas novas lideranças também têm pouca sensibilidade social. Eis aqui o terceiro elemento que explica as razões de menosprezarem o papel do Estado num país tão desigual como o Brasil. Para bolsonaristas, MBL e afins, a pobreza é causada pelos próprios pobres. Basta haver liberdade econômica, e isso será resolvido. Não se atentam para o número gigantesco de negros mortos nas periferias do país, não entendem a realidade do enorme contingente de mulheres chefes de família cuja batalha pela sobrevivência é dificílima, não sabem o quão duro é a meritocracia para quem não tem as condições adequadas para estudar.
Desdenharam o quanto puderam do Bolsa Família, até que o Congresso Nacional os obrigou a engolir o Auxílio Emergencial para salvar o país do caos em meio à pandemia de covid-19. Dali para diante, os bolsonaristas pelo menos ficaram mais espertos do que os outros conservadorismos nascidos das ruas de 2013: descobriram que precisam dos votos dos pobres, embora não façam nada estrutural contra a desigualdade. Talvez esse seja o lance mais hipócrita do governo Bolsonaro, que se gaba de criar um Auxílio Brasil que não tem nenhuma conexão com o restante das políticas sociais.
Um quarto elemento congrega os conservadorismos que cresceram com as jornadas de junho de 2013: a visão reacionária em relação a várias questões emergentes do século XXI, sendo a mais importante a questão ambiental. O meio ambiente é um tema decisivo para o Brasil nas próximas décadas. O que fizermos nessa seara definirá nosso lugar no plano internacional, se teremos mais investimentos externos, se comprarão nossos produtos e se seremos respeitados pelo mundo. Errar aqui é condenar o país ao isolamento e ao atraso. Na verdade, a visão de capitalismo desses neoconservadorismos, com destaque para o bolsonarismo, é do século XIX: predatória, sem preocupação social – “a ESG é uma bobagem anticapitalista”, já ouvi de um desses pseudoliberais – e pouco antenada com as novas necessidades do planeta.
O corolário desse ideário é um conservadorismo moral de tipo quase medieval, alimentado pela velha e longa tradição patriarcal brasileira. Um exemplo disso está na questão do lugar da mulher na sociedade. O presidente Bolsonaro é claramente um exemplo de quem não acredita na igualdade de gênero – aliás, fez um seminário no Dia Internacional da Mulher sem participação feminina entre os palestrantes. Ele já xingou e humilhou jornalistas, parlamentares e lideranças sociais – e seu filho, Eduardo Bolsonaro, já colocou em dúvida a utilidade de uma engenheira numa obra. Nesse sentido, as frases cretinas do deputado Arthur do Val comungam do mesmo machismo do presidente da República.
Obviamente o Brasil tinha em 2013 muitos problemas, e a sociedade precisa lutar pelos seus direitos. Mas o discurso e a prática que venceram trouxeram muitos retrocessos e, pasmem, hoje estamos piores do que naquela época. Se quisermos mudar o país para termos um futuro melhor, a renovação não pode se pautar pelo despreparo, pela visão pouco democrática, pela insensibilidade social, pela falta de ligação com o mundo contemporâneo e pelo moralismo hipócrita representados pelo MBL e pelo bolsonarismo. Como o país vai precisar ser reconstruído, precisaremos de ideias e propostas melhores para os próximos anos.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/eu-e/coluna/fernando-abrucio-mbl-e-bolsonaristas-sao-muito-similares.ghtml