José Miguel Wisnik / Folha de S. Paulo
[resumo] Iniciada há cem anos, Semana de Arte Moderna de 22 extrapolou os contornos paulistas para tornar-se marco da vida brasileira no século 20. O embate de suas potências e limitações prefiguraram os impasses da instauração do moderno por aqui, nas artes e na sociedade, o que se manifesta hoje em um Brasil espremido entre a grandeza e a barbárie.
A Semana de Arte Moderna é, hoje, uma pauta cultural e midiática que rememora a eclosão de cenas de modernismo explícito em fevereiro de 1922 no Theatro Municipal de São Paulo. Neste domingo (13), a inauguração da Semana completa cem anos.
A cidade explodia na condição de polo do comércio mundial do café, passando em ritmo acelerado de província à miragem da metrópole (“risco de aeroplano entre Mogi e Paris”, diz um verso irônico de Mário de Andrade na “Pauliceia Desvairada”).
Nela, o peso tradicional das oligarquias contracenava com a presença de multidões, de imigrantes de variada proveniência e de movimentos operários incipientes mas já organizados, como se viu na greve geral de 1917, cujo impacto paralisou a cidade por vários dias.
A frenética expansão urbana se dava a reboque dos interesses privados, sem projeto que não fosse o da aliança do monopólio dos serviços de transporte, de água, de gás e de luz (controlados pela Light) com a especulação imobiliária. O pai de Oswald de Andrade, por exemplo, ficou mais rico do que já era loteando o bairro de Cerqueira César, enorme extensão entre a avenida Doutor Arnaldo e o largo da Batata.
O escritor, contudo, virará muitas vezes do avesso as marcas dessa origem, com seu “fundamental anarquismo” e suas espetaculares traições de classe, o que faz de sua figura, literariamente transfigurada em “Memórias Sentimentais de João Miramar” (1924) e em “Serafim Ponte Grande” (1933), uma espécie de Brás Cubas não póstumo, ativo e autoparódico, exibindo descaradamente em vida o descaramento de seus pares, com brilho sarcástico e fulminante.
A seu modo, a biografia de Oswald já é ela mesma um índice da história do crescimento anômalo de São Paulo e a perfeita tradução da cidade como “avesso do avesso”, condição que ele levou a dimensões insuspeitadas e extraordinariamente fecundas.
A profusão de estilos arquitetônicos importados e misturados dava à paisagem urbana um quê de miscelânea e de pastiche, em um clima de hibridismo polifônico e “arlequinal”.
O antropólogo Claude Lévi-Strauss, que foi professor da USP nos seus inícios, nos anos 1930, disse mais tarde que a metrópole dos tristes trópicos ostentava uma vida intelectual novidadeira até o limite da inconsequência mas, no extremo, surpreendente; que ladeava arranha-céus com terrenos baldios e quase selvagens; e que a metamorfose indômita que nela se vivia contribuiu mais, em poucos anos, para a sua própria chegada ao pensamento estruturalista que a longa convivência com as seculares e sedimentadas cidades europeias.
São Paulo era, na verdade, um acontecimento urbano e humano em que se insinuavam alguns aspectos da vida mental das metrópoles industriais, quando a sensibilidade é exposta, em modo de aceleração, à eletricidade dos estímulos, à exaltação e ao trauma.
Porém, tudo isso na periferia do capitalismo (“galicismo a berrar nos desertos da América”, outro verso da “Pauliceia”) e em atrito com o marasmo dos hábitos arraigados de uma cidade que tinha cerca de 20 mil habitantes em 1872, 60 mil em 1890, quase 600 mil em 1922 e 1 milhão em 1930. A curva demográfica fala por si só do tamanho do empuxo e do quanto o fenômeno paulista era diferente do Rio. São Paulo era uma onda em processo de arrebentação.
Uma cidade que deixava de ser provinciana sem chegar a ser cosmopolita, à força de suas próprias contradições gritantes, que a abismavam entre o passado conservador estreito da província, limitado e ancorado nas suas oligarquias e nos seus hábitos morigerados, e um futuro galopante e irrefreável que se abria concretamente a uma nova complexidade da sociedade e da cultura, na base da fricção e do choque.
“Não era moderna, mas já não tinha mais passado”, diz Nicolau Sevcenko em “Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, Sociedade e Cultura nos Frementes Anos 20”. Brotava “como um colossal cogumelo depois da chuva” e como um enigma devorador “para seus próprios habitantes”.
Não à toa, o modernismo paulista vocalizou pela primeira vez no Brasil, de maneira programática, com alarde exibicionista e provocador, questões então candentes como a quebra dos tabus estéticos da representação realista da natureza, da linearidade sintática, da poesia metrificada, da consonância tonal em música —rupturas que marcariam a linguagem artística do século 20.
Anunciava com estrépito, embora as obras daquele momento em geral não acompanhassem o tamanho do espalhafato, uma arte não linear, não naturalista, não aprazível e liberadora de novas potências. Na “Pauliceia Desvairada”, escrita em 1921 e publicada no ano da Semana, Mário de Andrade praticou e teorizou, como ninguém até então, uma poesia simultaneísta, que ele associou com excepcional agudeza ao harmonismo e ao polifonismo em música.
A Semana poderia perfeitamente ter se resumido a um episódio datado, um arroubo curioso e sintomático em um momento localizado de transformações urbanas, mas acontece que dela participaram três dos maiores artistas brasileiros do século —Mário, Oswald e Villa-Lobos—, cujas obras terão desdobramentos e consequências fundamentais, aprofundando as promessas do movimento com o imponderável de suas criações singulares. Queiram ou não, a Semana foi uma conjugação artística de São Paulo e Rio.
Muita água rolou depois desses primeiros embates, e o arco das questões do movimento modernista ampliou-se, dos anos 1920 aos 1940, abrindo-se às interpretações do Brasil, à pesquisa e ao engajamento social, ao mesmo tempo que se abriam suas rachaduras internas e suas fraturas políticas.
Na conferência de 1942 (“O Movimento Modernista”), pronunciada no Rio, quando avaliava criticamente a Semana 20 anos depois, Mário deixa explícito que foi a oligarquia cafeeira quatrocentona —de corte aristocrático e já decadente, por isso mesmo disponível, na figura do empresário intelectual Paulo Prado— que deu suporte material ao movimento, desejando acertar passo com a modernidade da Segunda Revolução Industrial, por um lado, e confrontando a burguesia do dinheiro pelo dinheiro, por outro (o “burguês burguês”, “a digestão bem feita de São Paulo”, conforme a “Pauliceia”).
Mário esboçava então uma análise das bases de classe do movimento e criticava o alheamento das responsabilidades sociais e políticas que marcou, segundo ele, a “orgia intelectual” dos anos 1920. Muita crítica que se tenta fazer hoje ao modernismo já está feita ali com mais lucidez. Mário, no entanto, a fazia não porque negasse o modernismo, mas porque afirmava em âmbito nacional o seu vetor construtivo, as conquistas da cultura moderna brasileira, “o direito permanente à pesquisa estética”, a “atualização da inteligência artística” e a estabilização de suas instituições, sempre penosamente sustentada.
Em outras palavras, o que ele defendia naquele momento eram os pilares daquilo que hoje está sob o ataque atroz do bolsonarismo, com a sua corrosão antimoderna dos valores intelectuais e dos símbolos artísticos acumulados durante esses cem anos e com sua política de desmantelamento das instituições culturais.
Restrita em grande parte, na sua época, aos contornos paulistas, com o tempo a Semana tornou-se uma referência histórica, uma data reverencial e um mito de origem, consolidando-se depois como marco da vida brasileira no século 20.
Profanação do templo da cultura burguesa tradicional sem deixar de ser uma cerimônia de elite, autopublicitária já na origem, como costumavam ser as manifestações da vanguarda artística europeia que ela emulava, sem imitá-las à risca, a Semana recebeu na altura dos seus 50 anos (1972) outras camadas de consagração institucional que incitam, por sua vez, ao desmanche de sua mitologia.
O que resulta na mistura confusa, que temos no ar, hoje, de profanação datada com consagração da profanação e profanação da consagração. Nenhum desses formatos corresponde propriamente a uma reavaliação crítica capaz de identificar as potências e os limites do movimento segundo as perspectivas atuais.
Avaliação crítica não se confunde, por exemplo, com sanha diminuidora pautada pela querela localista, com “petite histoire” dos bastidores e com a manipulação arbitrária do anedotário, tudo baseado em uma visão rasa da literatura que jamais enfrenta as obras. Ruy Castro põe aquelas comemorações oficialescas do cinquentenário da Semana, em tempos de ditadura, na conta de Mário e Oswald, como se isso comprovasse uma vocação originária do movimento modernista para a direita.
Porém, o que havia de apropriação oficial e mumificante do ideário da Semana, em 1972, vinha justamente da articulação de remanescentes ligados às correntes ufanistas do verdamarelismo e da anta, isto é, Menotti del Picchia (que odiava Oswald, visceralmente) e Cassiano Ricardo, ainda vivos àquela altura e vendo na ocasião política uma oportunidade para recuperar o prestígio que a obra deles nunca teve.
Os artistas de oposição, os que não só lutavam contra a ditadura mas estavam fazendo obras seminais para a iluminação crítica e criadora do período, estavam encenando “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, como Zé Celso no Oficina em 1967, filmando e encenando “Macunaíma”, de Mário de Andrade, como Joaquim Pedro de Andrade em 1969 e Antunes Filho em 1978. Ou Julio Bressane, mais tarde, fazendo em “Tabu” (1982) um contraponto entre Oswald e Lamartine Babo.
Exposição revê legado do modernismo na arte contemporânea; conheça obras
Outros intelectuais e pesquisadores difundiam o modernismo dentro dos meios institucionais possíveis e dentro de uma perspectiva crítica resistente e antiautoritária. A exposição internacional promovida pelo Ministério das Relações Exteriores, que Ruy Castro cita como exemplo de franca cooptação, trazia à frente a frase “Toda canção de liberdade vem do cárcere”, extraída do “Prefácio interessantíssimo” à “Pauliceia Desvairada”.
O movimento modernista só poderia ter irrompido em São Paulo, pelas especificidades locais já apontadas, mas desenvolveu variantes virais poderosas em outros lugares, por contágio e irradiações recíprocas, como se vê nos livros de Manuel Bandeira, Drummond e Murilo Mendes lançados em 1930.
Os penetrantes retratos de Oswald e de Mário traçados por Pedro Nava em “Beira-mar” relembram o momento em que os paulistas chegavam a Belo Horizonte em 1924. O poema de Carlos Drummond de Andrade, “No Meio do Caminho” (“no meio do caminho tinha uma pedra”), que vale por um movimento inteiro em dez versos, sendo já a compactação madura do modernismo, também foi alvo de intensa profanação e consagração cruzadas.
Talvez porque o Brasil, “condenado ao moderno” (segundo a famosa frase de Mário Pedrosa) sem nunca chegar a sê-lo, agarre-se ao fetiche de uma imagem que nunca atinge e nunca supera, do mesmo modo como acontece com a Semana, reivindicada por campos ideológicos opostos, cultuada e apedrejada, sintoma e ídolo polêmico, pauta jornalística que retorna e repete “ad infinitum” as mesmas perguntas.
Quando Mário morreu em 1945, Drummond escreveu uma elegia (“Mário de Andrade desce aos infernos”, em “A Rosa do Povo”) que é, além de um depoimento afetivo profundo, o reconhecimento de que o poeta da rua Lopes Chaves encarnava a entidade Brasil e tinha se tornado um ponto crucial de ligação entre as muitas dimensões simbólicas do país.
Quem o ler há de ver que a importância nacional de Mário de Andrade não é uma invenção fraudulenta da USP nos anos 1960 e 1970 (como defende Luís Augusto Fischer), mas tinha entrado na corrente sanguínea da cultura desde muito tempo.
As obras dos autores modernistas fortes se irradiaram participando vivamente do caldo de uma cultura brasileira cujo índice inicial ficou sendo retroativamente a Semana. Mito de origem inventado a posteriori, certamente, como todos esses marcos históricos, mas que “colou” como sintoma e como promessa das possibilidades do país no século 20. Acompanhar essa irradiação diz muito mais do que a volta aos “fatos” e fofocas feita na base da marcha a ré apequenante.
De Di Cavalcanti e Anita a Tarsila, Brecheret, Cícero Dias, Portinari, ela ressoa nos artistas visuais que redesenharam a face do país. Sérgio Buarque de Hollanda faz parte disso no campo do pensamento.
‘O Rei da Vela’
A obra do carioca Heitor Villa-Lobos, cuja presença em 1922 foi marcante e definidora (Fischer o omite em seu artigo sobre o modernismo nesta “Ilustríssima” para não embaraçar a tese monocórdica do paulistismo estrito do movimento), está profundamente presente em três artistas tão poderosos quanto diferentes: Tom Jobim, Glauber Rocha e Zé Celso; a música popular, o cinema e o teatro; Rio, Bahia e São Paulo.
Villa era o ídolo musical e o modelo de Tom, que dialoga expressamente com ele no disco “Matita Perê” (1973). Mesmo tendo sido o braço musical e pedagógico da política de massas do Estado Novo, com o programa do canto orfeônico, Villa-Lobos foi parar com toda a força no cinema do subdesenvolvimento de Glauber Rocha, irrigando sonoramente “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) e “Terra em Transe” (1967), inconcebíveis sem ele.
Zé Celso concebeu o estraçalhamento de Penteu nas “Bacantes” de Eurípedes com base no extasiante coro do “Choros n. 10”, conhecido como “Rasga o Coração”, cujos meandros polifônicos são sustentados por todo o elenco em um verdadeiro”tour de force”.
No mesmo movimento, resgata as palavras de Catulo da Paixão Cearense sobre música de Anacleto de Medeiros, que Villa-Lobos tinha tomado como referência na parte coral-sinfônica da obra, e rasga o coração da nossa dor mergulhando-a na “prismatização da luz solar” que vem da música brasileira.
Volto então a Oswald, para esclarecer um ponto crucial e urgente. Ao procurar chocar admiradores mais ingênuos de Oswald e Mário trazendo à tona facetas menos conhecidas dos dois autores em sua juventude, Ruy Castro transcreveu em sua coluna nesta Folha trechos de um artigo racista do jovem Oswald sobre o pugilista negro Jack Johnson.
O texto, que saiu em “O Pirralho” na altura de 1914, cerca de oito anos antes da Semana, é certamente um atestado da origem de classe do escritor e um comprovante dos estereótipos violentos que circulavam livremente entre os pares burgueses, naturalizando a estigmatização do negro e expressando, de quebra, o ressentimento diante de um homem preto e vencedor. O interesse histórico do documento só se completa, no entanto, quando posto em perspectiva.
Em 1937, Oswald foi convidado pela Frente Negra Brasileira a discursar em uma cerimônia de homenagem a Castro Alves, que se realizou no Theatro Municipal. Apenas dois outros brancos, além dele, foram chamados ao palco.
Em seu discurso —feito no tom solene que a circunstância exigia e na dicção de um tribuno das arcadas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que ele também era—, Oswald invoca Zumbi dos Palmares e afirma que os negros “são a vanguarda dos que pedem a justiça social”. Concita a uma aliança afro-indígena com os “humilhados dos três continentes”, “irmanados pela má alimentação e pela péssima moradia, pela doença e pela falta de escola” —”brancos, amarelos e índios” organizando-se “sob as bandeiras heterogêneas mas unidas da democracia”.
Ressalta que cabe aos negros o protagonismo nessa luta, pois são eles que vieram do fundo tenebroso do navio negreiro e que fazem parte da “população mesclada do outro navio de escravos” que é a própria sociedade brasileira, na qual arcam com “as fornalhas do trabalho e os duros serviços da tripulação”.
Suas marcas de nobreza, arrancadas “do tronco infame, das cadeias e do chicote”, dão à população negra, diz ele, “direitos enormes”. Em suma, afirmação da dimensão racial da luta política.
Oswald relata ainda que a Frente Negra Brasileira, “uma das mais belas organizações sociais que tivemos”, era perseguida e agredida impunemente pelos “roncos” e “ameaças” dos “camisas-verdes” integralistas que, na ocasião, tomaram metade do teatro, fardados, tentando sabotar o ato.
O discurso, proferido entre vivas e vaias, constitui, segundo Oswald, “uma das maiores alegrias de [sua] vida de lutador”. Naquele momento, diz ter se sentido, como nunca antes, em um lugar para além “dos salões futuristas de 22”. 1
Toca-me profundamente que a imagem do navio negreiro, no discurso da Frente Negra Brasileira, lembre um trecho de “O Santeiro do Mangue”, peça teatral que Oswald escrevia nessa época e que o Teatro Oficina encenou com o nome de “Mistérios Gozozos”.
Mário de Andrade
A canção “Coração do Mar”, que eu musiquei sobre palavras dele, faz parte dessa peça sobre a zona do mangue no Rio de Janeiro. Elza Soares a escolheu em 2015 para abrir o álbum “A Mulher do Fim do Mundo”, desembocando no refrão “É o navio humano quente/ Negreiro do Mangue”, que ela fez questão de cantar à capela, ostentando na voz a dor, a nudez e a força das palavras. Palavras às quais Zé Celso tinha já acrescentado, em consonância com o original: “É o navio humano quente/ Guerreiro do Mangue”.
Elza não teve qualquer dificuldade para entender imediatamente a dimensão profunda dessas canções oswaldianas, ela que é a expressão total da antropofagia popular tal como Oswald a define, capaz de absorver diferentes estilos e fundi-los com amor e humor, como faz com o “Mambo da Cantareira”, interpretado como se fosse uma peça de flamenco (“Elza Soares & João de Aquino”), ou “Fadas”, de Luiz Melodia, como se fosse Astor Piazzola (“Do Cóccix até o Pescoço”).
Gravou “Flores Horizontais”, expressão da voz da mulher prostituída e violentada, também sobre texto de “Mistérios Gozozos”, rasgando a voz e o coração, e me contou que seu refrão (“Com Deus me deito/ Com Deus me levanto”) era uma oração íntima dos negros pobres no Brasil, que ela rezava com o pai antes de dormir.
Em suma, se você aperta Oswald de um lado, ele cresce de outro. Morreu no ostracismo em 1954, mas foi reconhecido em alto nível pelo grupo da poesia concreta e pelos músicos-poetas tropicalistas por sua poesia, seus manifestos, seus romances (o par “Miramar”/”Serafim”) e seus escritos filosóficos tardios, nos quais se combinam de modo próprio Nietzsche, Freud, Marx e o pensamento selvagem.
Haroldo de Campos identificou na sua poesia a radicalidade da linguagem ligada ao “ready made”, à visualidade e à síntese. Roberto Schwarz a relacionou com o “potencial materialista e rebelde da obviedade bem escolhida” que “se encontra na poética de Brecht”, como já tinha sido lembrado por Haroldo, fazendo uma análise aguda do seu sentido crítico, de seus ambivalentes vínculos com a oligarquia cafeeira, e reconhecendo-a dialeticamente como “um dos momentos altos da literatura brasileira”.
Oswald de Andrade
Recentemente, a antropologia de Eduardo Viveiros de Castro destacou a sua intuição surpreendente do perspectivismo ameríndio. Oswald identificou a crise da posição patriarcal no mundo contemporâneo e augurou a utopia de uma vida humana sem finalidade mercantil, à altura do seu destino e “à espera serena” da devoração do planeta pelo imperativo cósmico, sem precipitá-la em nome do lucro e sem abdicar da alegria (como Ailton Krenak).
Oswald é discutível, polêmico, anárquico e incorreto até a medula, mas a crítica não tem como negar-lhe as dimensões da grandeza e da complexidade. O negacionismo de Ruy Castro faz par com o de Lobão, quando este malha Oswald e emula Olavo de Carvalho em seu livro “Manifesto do Nada na Terra do Nunca” (com mais conhecimento de causa, aliás, e mais envolvimento na leitura do texto, mesmo que completamente equivocado, do que as avaliações puramente externas de Ruy).
Para mim, o que há de mais significativo, hoje, sobre o acontecimento em si da Semana de Arte Moderna não está contido nem na cena nem nos bastidores do Municipal, mas no poema final da “Pauliceia Desvairada”, de Mário de Andrade, que se chama “As Enfibraturas do Ipiranga”.
É um poema longo, meio descalibrado, escrito ainda em 1921, mas que tem o efeito de uma espécie de antevisão alucinada e sintomática, como só a poesia poderia fazer, dizendo nas linhas e nas entrelinhas aquilo que os programas explícitos não dizem. 2
Mário figura a população de São Paulo reunida no vale do Anhangabaú para cantar em coro um grande “oratório profano” com acompanhamento sinfônico. Não se trata de um coro unitário, mas de um campo conflagrado de blocos corais que se enfrentam em uma “grita descompassada”, acompanhados de uma orquestra agigantada e caótica.
Entrincheirados nos terraços e janelas do Theatro Municipal estão os artistas acadêmicos, parnasianos e beletristas (“orientalismos convencionais”) entoando com voz grandiloquente a marcha fúnebre da conservação universal dos costumes e dos padrões estéticos.
Com os pés no fundo do vale, assumindo a própria desafinação e a falta de ensaios, os modernistas (“juvenilidades auriverdes”) deblateram uma espécie de “hino à alegria” tropical que faz pensar em uma parada gay “avant la lettre”.
Não porque tematize a questão de gênero, mas porque levanta um clamor erótico no sentido mais amplo da palavra —o de Eros como expressão fusional da existência, afirmando a multiplicidade polimorfa do desejo contra o paredão conservador, refratário às linhas mutáveis da vida.
Nas sacadas elegantes do lado oposto do vale, a burguesia endinheirada (“senectudes tremulinas”) exibe sua posição de privilégio apoiando de maneira caricata o bloco conservador.
Postados no viaduto do Chá, trabalhadores (“sandapilários indiferentes”) assistem ao entrevero burguês e vaiam tanto os “passadistas” como os “futuristas”, mais interessados na ópera (tradição importante para a cultura operária italiana) e nos sucessos da nascente música popular urbana, em que despontava o recente “Pé de Anjo”, de Sinhô.
Colocando-se o embate não dentro, mas fora do teatro, a cidade é vista como aquilo que ela passava a ser: palco social explícito, anfiteatro aberto de choques. Comparecem os grupos que participaram, mas também os que não participavam do acontecimento no Municipal, fazendo parte de uma batalha campal de forças comportamentais e artísticas, encenando suas contradições gritantes.
Enquanto ricaços, apresentados como decrépitos, dão as mãos ao moralismo esteticamente reacionário, o poema não esconde que há entre modernistas e trabalhadores, mais que uma distância, uma fratura. A polêmica estética acontece dentro de um arregaço maior que engolfa classes e grupos sociais em reações díspares e autocontraditórias.
A arte erudita da cultura dominante não rege a sociedade de massas. O café com leite das oligarquias não dá mais conta da escala dos novos embates socioculturais. A própria exaltação modernista namora com a autoaniquilação decadentista.
Sob um regime de polifonia acirrada, a batalha ritual passa por um processo de fricção, fritura e fratura, rompendo-se afinal o tecido esgarçado sem que seja vencido o bloco conservador.
Recobertas pelo manto de uma “enorme vaia de assovios, zurros, patadas”, as “juvenilidades auriverdes” morrem como sementes no solo do Anhangabaú, augurando-se sua utópica redenção futura em um tempo mais propício.
Mário passava longe, como se vê, de uma previsão eufórica e triunfante sobre o destino do movimento modernista. Trata-se de uma encenação dramática e francamente problemática da instauração do moderno no Brasil, não só do ponto de vista artístico, mas do ponto de vista social e político, enquanto abertura a uma sociedade complexa e desigual cuja crise Mário pensou sanar depois com o resgate da cultura popular e, mais tarde ainda, com uma agônica adesão à arte engajada.
O poema de 1921 é um índice convulsionado da funda dificuldade de mudança que nele se constata e anuncia. Não deixa de nos soar estranhamente atual a presença de uma agressiva e empedernida ação antimoderna acumpliciada com a casta empresarial, como se já assistíssemos, cem anos antes, à dança de Damares com faria limers.
A face luminosa dessa atualidade encontra-se no emblemático show de Emicida no Theatro Municipal de São Paulo em 2020, que costura a matéria documental e artística do filme “AmarElo – É Tudo pra Ontem” (disponível na Netflix). O espetáculo é uma assumida profanação (enquanto ocupação do espaço interdito, tomando-o para usufruto dos excluídos), ao mesmo tempo que uma consagração do espaço público destinado a todos.
Emicida dialoga diretamente com a Semana de Arte Moderna, elege uma epígrafe de Mário de Andrade (“nosso modernista favorito”), homenageia a antropofagia oswaldiana (“só o que é do outro me interessa”) e mostra o quanto o Theatro Municipal e o vale do Anhangabaú permaneceram ao longo do tempo como o eixo de referência das pulsações culturais da cidade para os invisibilizados e postos à margem.
Resgatando as enfibraturas históricas da negritude em São Paulo, chama a atenção para o fato de o MNU (Movimento Negro Unificado) ter elegido as escadarias frontais do Municipal como espaço de suas manifestações históricas, em 1978, e como as batalhas de ritmo e poesia do movimento hip-hop escolheram o largo São Bento como seu território, homenageando o escravizado-arquiteto Tebas, construtor de igrejas no século 19.
“AmarElo” resgata, assim, um arco de tempos e espaços contendo múltiplas manifestações políticas e criativas, individuais e coletivas, de modo a construir, a partir das periferias, uma inesperada ponte sobre a fenda, apontando para o Anhangabaú.
Se há algum lugar onde se cumpre o desejo adormecido no sonho convulsionado e inconcluso do poema final da “Pauliceia”, para além de si mesmo, não é nas frenéticas comemorações da Semana, mas nesse acontecimento.
A força e a fraqueza do grande arco da cultura moderna no Brasil, que vai dos anos 1920 aos 1960, consiste na aliança entre o erudito e o popular com base na mediação da classe média. Esse arco poderoso incluiu a literatura, as artes visuais, a música de concerto e chegou à MPB e ao cinema novo, apontando para um salto social que a ditadura interrompeu.
Acontecimento decisivo no campo cultural mais recente é a emergência de um sujeito periférico que se encarrega das próprias mediações, a começar do “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MC’s, em 1997. Emicida leva adiante essa chama. Sabe das diferenças com os modernistas, mas não abre mão da grandeza inspiradora de quem acrescenta mundos ao mundo.
Oswald de Andrade distinguia a alta e a baixa antropofagia. A alta antropofagia reside basicamente na capacidade de “ser outro” ao reconhecer o outro em si (trata-se de uma operação de rigor que não se confunde com a indiferenciação do consumo onívoro nem com o ato de comer e “vomitar” influências).
Já a baixa antropofagia, ele resumiu, no “Manifesto Antropófago”, em quatro palavras: inveja, usura, calúnia e assassinato. Não é difícil reconhecer essas forças nefastas no panorama atual, na forma da cultura do ressentimento (inveja), do liberalismo oportunista (usura), das fake news (calúnia) e da necropolítica ostensiva (assassinato).
O assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe é a evidenciação horrenda da baixa antropofagia dada em espetáculo dantesco —a consumação do Brasil como o cu do mundo arreganhado e à mostra. “A mais triste nação/ Na época mais podre/ Compõe-se de […]/ Grupos de linchadores”, diz a canção de Caetano Veloso (“O Cu do Mundo”).
Por uma ironia cruel, alegórica e quase surrealista, o quiosque em que Moïse foi morto se chama Tropicália. Tropicália, além de nos remeter a Caetano e a Hélio Oiticica, associa-se a Oswald e, em um passo, estamos de volta ao espectro da Semana de Arte Moderna, na encruzilhada entre o século 20 e o 21.
Trata-se de transformar o horror em totem. Marcar e venerar o lugar de Moïse. Revirar e reexistir. Tornar inadmissível a normalização do inadmissível. Rasgar o coração, banhar a imensidão do nosso penar na prismatização da luz solar.
Em 2022, o Brasil está espremido entre a alta e a baixa antropofagia. Eis a questão.
[1] O discurso foi transcrito por Oswald em sua coluna “Banho de sol”, publicada no periódico Meio Dia, em 14/03/1939, com o título “Comemorando Castro Alves”. Encontra-se na antologia do jornalismo oswaldiano organizada por Vera Maria Chalmers e publicada com o nome de “Telefonema” (Civilização Brasileira, 1974, p. 56-57). Já a narrativa do ato encontra-se em “Sobre Castro Alves”, publicada em 30/03/1944 no Correio da Manhã, e recolhida em edição posterior de “Telefonema”, organizada também por Chalmers (Globo, 2007, p. 114-116).
[2] Desenvolvo o argumento em “A República Musical Modernista”, publicado em Gênese Andrade, (org,), Modernismos 1922-2022 (Companhia das Letras, 2022, p. 170-195).
*José Miguel Wisnik é professor sênior de literatura brasileira na USP, ensaísta e compositor, é autor, entre outros, dos livros “Maquinação do Mundo” (2018) e “Veneno Remédio” (2008)
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/02/semana-de-22-ainda-diz-muito-sobre-a-grandeza-e-a-barbarie-do-brasil-de-hoje.shtml