Se um viajante presente no grito do Ipiranga voltasse 200 anos depois, ficaria abismado o quanto mudou na paisagem e quanto ainda continua igual o Brasil.
Notaria que os seres humanos negros já não são mercadorias compradas para o trabalho forçado, mas perceberia que ainda há um abismo na maneira como eles vivem, trabalham, estudam e moram em comparação aos brancos. Notaria que 200 anos não foram suficientes para acabar o racismo, nem a desigualdade. Não encontraria Casa Grande e Senzala nas fazendas, mas por toda parte distinguiria a extrema diferença entre os condomínios e as favelas. Na verdade, o viajante observaria que a desigualdade se ampliou, quando se considera o conforto que as surpreendentes novas técnicas oferecem hoje aos descendentes sociais dos senhores, em comparação a 200 anos antes.
Da mesma forma, ficaria surpreso com o avanço educacional. A população quase totalmente analfabeta de antes saltou para a realidade atual de quase todos matriculados em escolas, inclusive os descendentes sociais dos escravos; mas logo veria como aumentou a desigualdade escolar. Em 1822, todos eram analfabetos e sem escola, agora, apesar de todos matriculados, surgiu uma desigualdade abismal entre a educação oferecida aos descendentes sociais da Casa Grande, e a educação relegada dos pobres descendentes sociais da Senzala. Ao ponto de, 200 anos depois, somam ainda 10 a 12 milhões os adultos analfabetos plenos, 70 milhões analfabetos funcionais e quase todos analfabetos para o mundo contemporâneo do século XXI.
Ao caminhar pelas cidades, o visitante não acreditaria no que vê: edificações, rodovias, pontes, veículos inimagináveis à época, mas observaria o caos urbanos que caracteriza as “monstrópoles” de hoje; e veria a desigualdade ampliada no conforto, na segurança, na higiene que, apesar de melhorar para todos, melhorou muito mais para poucos, chegando a fazer mais desiguais o condomínio e a favela do que a Casa Grande e a Senzala.
O grande avanço verificado pelo viajante estaria na integração territorial e na potência econômica, construídas nos dois séculos. O território litorâneo produtor de café e açúcar havia-se expandido por todos os 8,5 milhões de quilômetros quadrados, todo ele cortado por estradas e dispondo de aeroportos, para não falar no milagre da telefonia e da internet. O país havia-se beneficiado da revolução industrial que surgia no mundo nas primeiras décadas de sua independência e se transformado em uma das dez maiores potências do mundo.
Mas, ao prestar mais atenção, descobriria que, apesar de mudar para o Centro-Oeste, o principal setor produtivo continua agroexportador, e sua formidável rede de transporte carece de eficiência, ao passo que a indústria até hoje depende de proteção estatal por falta de competitividade e inovação.
Sobretudo, a grande surpresa do viajante, ao conversar com os habitantes de hoje, seria perceber como em nada mudou a aceitação de injustiças e atrasos. Em 1822, teria assistido justificar-se o tratamento dado aos escravos sob o argumento de que “eles são negros”; em 2022, ouviria a justificação do absurdo da desigualdade escolar sob o argumento de que “eles são pobres”, os sem escola. A mesma aceitação com a escravidão, agora com a desigualdade.
A imensa falta de indignação diante da pobreza e da injustiça, o visitante sentiria ao ver na televisão, com naturalidade, simultaneamente notícia de 20 milhões de famintos sem comida em casa e propaganda de comida, publicidade de concursos de alta gastronomia, aulas de culinária e a afirmação de que o país que nasceu 200 anos atrás agora é o celeiro do mundo, mas não alimenta.
*Cristovam Buarque é ex-senador pelo Distrito Federal, professor da Universidade de Brasília (Unb)
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2022 (39ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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