Sucesso instantâneo, “O canto livre de Nara Leão”, série em cinco capítulos que estreou no dia 7 de janeiro, no Globopay, está sendo elogiada por todo mundo. Basta acompanhar as manifestações entusiasmadas nas redes sociais. E com razão. A série merece os aplausos. Ela resgata a trajetória de uma de nossas mais importantes cantoras.
Nara morreu cedo, em 1989, aos 47 anos, vítima de um tumor no cérebro. Caso estivesse viva, teria completado 80 anos em 19 de janeiro. Foi uma mulher à frente de seu tempo.
O diretor, Renato Terra – autor dos documentários “Uma noite em 67” (2010) e “Narciso em férias” (2020) –, disseca todas as etapas da carreira de Nara Leão. Para tanto, teve à sua disposição um material iconográfico excepcional.
Acompanhando os capítulos, o que salta aos olhos é uma personagem que é muito mais do que uma cantora. Nara era afinada e tocava bem o violão – disso não há dúvida. No entanto, as imagens de arquivo e os depoimentos de pessoas que conviveram com ela atestam sua postura independente, avessa a modismos, a patotas, a opiniões pré-concebidas. Sua sensibilidade, seu faro fino para perceber as novidades, sua vontade de experimentar, a levou a estar no lugar certo e na hora certa em momentos decisivos da cultura brasileira dos anos de 1960/70.
A abordagem da série realça a independência que a própria Nara teve na construção de sua carreira. Não houve planejamento marqueteiro, como estamos acostumados a ver nos dias de hoje. Com Nara foi outra história. Ela se deixava levar pela intuição e pelo desejo. Tinha controle total sobre os discos que gravou e administrou a carreira a seu modo. Em alguns momentos, não quis cantar. Recolheu-se. Foi cuidar dos filhos e frequentar a faculdade de Psicologia, onde as colegas de aula a tratavam de igual para igual.
Desde essa época, já tinha opiniões firmes. Peitou o padre da PUC, quando este proibiu a apresentação de seu grupo de amigos na universidade católica caso Norma Bengel, vedete de Carlos Machado, se apresentasse também. “Se ela não cantar, ninguém canta”, disse Nara. E foram todos para o Teatro de Arena da Praia Vermelha, que entrou para a história como um dos primeiros shows da Bossa Nova.
Suas apresentações, no famoso estilo banquinho e violão da Bossa Nova, eram concorridas. Seus joelhos, à mostra, causavam frisson. Em entrevista posterior, riu da situação: “é porque eu sentava e botava o violão em cima da perna, e aí o vestido subia”.
Mesmo sendo referência da Bossa Nova, no auge do sucesso rompeu publicamente com o movimento. “A Bossa Nova me dá sono”, chegou a dizer.
Levada por Carlinhos Lira, se aproximou dos cantores dos morros cariocas, uma novidade para ela. Passou a frequentar o Zicartola e descobriu que, mesmo em meio à pobreza, era possível fazer belas músicas. Pouco depois, em 1964, estrelou, ao lado de João do Vale e Zé Keti, o show “Opinião”, primeiro espetáculo de resistência à ditadura militar.
Em 1966, outro episódio polêmico. Em uma entrevista, disse que o Exército não servia para nada, e quase foi presa pelo ditador de ocasião, o marechal Castelo Branco. Carlos Drummond de Andrade, em um poema, saiu em seu socorro: “Meu ilustre marechal/dirigente da nação, /não deixe, nem de brinquedo, /que prendam Nara Leão.”
Em seguida, apoiou a Tropicália, movimento que teve a participação decisiva do “mano” Caetano de Maria Bethânia – cantora que Nara conheceu jovem na Bahia e a quem indicou para substituí-la no palco do show “Opinião”, que havia deixado. “Ela foi a chave para o conto de fadas que Deus escreveu para mim”, diz Bethânia em depoimento para a série.
Com as músicas de protesto em alta, resolve dar outra guinada na carreira. Encomenda a Chico Buarque uma canção lírica. Nascia “A Banda”, com a qual Nara e Chico vencem o II Festival de Música da Record, em 1966.
Para além do rico perfil de Nara Leão, a série chama a atenção também por nos apresentar um país de que estávamos esquecidos que um dia existiu, e que não se parece em quase nada com o que vivemos atualmente. Sem saudosismo. Ao mirar no passado, por meio de imagens da cantora, a série acerta o presente. Assisti-la nos faz renovar o ânimo para enfrentar a desfaçatez atual, a vulgaridade reinante, o negacionismo no poder.
Quem ainda não viu, não perca!
*Henrique Brandão é jornalista e escritor
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2022 (39ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP).
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