Ricardo Marinho
Qual é o destino de nossa cultura política agora que o mundo que a viu nascer não existe mais? José Antonio Segatto (Cultura política e democracia. Curitiba: CRV, 2020. 248 p.), nesta antologia de artigos e ensaios, dedicou amplo espaço às mudanças que ensejaram essas transformações, bem como a conjuntura, nascida entre nós após o abalo de 2013, e indo até a antessala da pandemia. Esses ensaios, coletados aqui neste volume, traçam uma história nada linear de nossa cultura política e democracia para destacar a tortuosidade, as involuções e explorar suas perspectivas.
Faz isso a partir de um conjunto complexo de inspirações, que passam por Machado de Assis (1838-1908) e seus irmãos gêmeos em Esaú e Jacó (1904), recentemente redimensionados na telenovela Um lugar ao sol em exibição; Antonio Gramsci (1891-1937) e sua análise do Risorgimento em tudo necessária para nossos 200 anos (1822) e sua inspiração para o nascimento da Itália (1861); Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) e seu O leopardo (1958); o conto 1º de maio de Mario de Andrade (1893-1945) que tem fincas raízes no autor que dedicou à data outro livro em 1985; o Amauta, de José Carlos Mariátegui (1894-1930); Caio Prado Junior (1907-1990), Nelson Werneck Sodré (1911-1999) e muitos da extraordinária onda de produção criativa dos últimos anos.
Desta forma, não é um livro a passeio. Apesar de sua linguagem acessível, exige do seu leitor a disposição de adentrar nesses terrenos movediços e de soluções nada fáceis.
A leitura de Cultura política e democracia, ciente de que Segatto é um historiador e de formação crítica sólida, mas sempre ciente de que seu permanente desmanche no ar, nos faz parar para refletir sobre o fato desta obra ser fruto do acompanhamento da crise da cultura política e da democracia manifesta em 2013 e, para tal objetivo, mobiliza sua experiência de mais de 25 anos na busca de saídas.
A atenção é centrada, assim, na sociedade, no mundo e na cultura política, observando, de um lado, as formas de expressão na era da globalização, no pequeno espaço que hoje permanece na cultura democrática e republicana, e, de outro lado, o reflexo do papel dos intelectuais e o da ciência sobre muitos outros aspectos da arte e cultura contemporâneas.
Não é por acaso que Segatto observa que a revolução científico-tecnológica dos séculos XX e XXI mudou as formas e os ritmos dos dias tais como acontecia anteriormente na humanidade. Neste mundo de ilusões de supostas infinitas possibilidades, o popular e as massas, depois de terem feito irrupções na história no século anterior, como interpreta o Machado de Assis, ficaram subsumidos a anti-heróis de 2013 para cá no cenário político. Para Segatto, este ressurgimento rompe muros entre a sociedade política e a vida avessa à democracia e república, entre a veneração e o consumo, o trabalho e o lazer, o corpo e o espírito. Ele conduziu até aqui a um esvaziamento progressivo do papel até então decisivo reservado à cultura política, o que acabou por fazer emergir uma sociedade incivilizada onde uma das suas melhores expressões foi o governo de Donald Trump.
Para Segatto, o belo, a estética e, consequentemente, a cultura política de sentido republicano e democrático deram lugar a uma cultura com significado antropológico puramente descritivo, empurrando-a para a desrepublicanização progressiva da cultura, da política e da sociedade, examinando, com extrema clareza, o que tem acontecido em escala global no intervalo dos anos analisados, com o advento e a afirmação dos diversos e numerosos partidos permissivos ao populismo, muitas vezes de extrema direita, na Europa e nas Américas.
E como sairemos desta adversidade? Há que revigorar o reformismo republicano e democrático. Esta é uma das diversas observações que Segatto nos indica nessa árdua reconstrução.
Saiba mais sobre o autor
* Ricardo José de Azevedo Marinho é professor do Instituto Devecchi e da Unyleya Educacional
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2021 (38ª Edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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