André Amado analisa, em seu artigo, como se constrói personagens fortes e inspiradores, capazes de levar os leitores a viverem histórias inesquecíveis
Peguei ao acaso I’ll Walk Alone, de Mary Higgins Clark, para ler. Ato sem pensar. A autora já publicou mais de 30 títulos, muitos dos quais frequentadores de listas de best-sellers, duas razões que, em geral, me levam a descartar a escolha. Acontece que, num primeiro exame, logo nos agradecimentos, me deparei com a seguinte declaração:
Cheguei ao final, o que quer dizer que a história foi contada, a jornada, concluída, e as pessoas, que no ano passado não passavam de produto de minha imaginação, viveram a vida que escolhi para elas, ou, melhor dizendo, que elas escolheram para elas mesmas.
Clark acabava de desmontar meus preconceitos contra livros de produção em massa, preconceitos que, de resto, não faziam o menor sentido para quem, como eu, era admirador habitual de Michael Connelly e John Grisham, ambos autores prolíferos de obras de sucesso. Enfim, na beirada de uma estante, não são raras demonstrações de incoerência.
Fascinou-me que, em uma frase, Clark expusesse um dos dilemas centrais dos romancistas: alimentar a autonomia dos personagens de suas histórias, ou, ao contrário, controlar até mesmo a respiração deles. Em uma palavra, confessaria Ray Bradbury (1920-2012): “Meus personagens escrevem a história para mim. Eles me dizem o que querem, e eu lhes digo para ir em frente. Acompanho seus movimentos, datilografando o texto à medida que eles correm ao encontro do destino”. Já Vladimir Nabokov (1899-1977) decretaria: “Se eu quiser que meus personagens atravessem uma rua, eles atravessam e ponto!”.
Por sorte, a riqueza dessa discussão rejeita posições extremadas. Gustave Flaubert (1821-1880), a quem se atribui um dos pilares da literatura ocidental, diria: “O escritor tem de atuar como Deus: está em todas as partes, mas nunca é visível”. Ernest Hemingway (1899-1961), outro grande nome da galeria de escritores, centraria o debate: “Ao escrever uma novela, o escritor deve criar um ser vivo, não pessoas com personagens”. Era a pista de que precisava Milan Kundera (1929-…) para afirmar: “O personagem não é a simulação de um ser vivo. É um ser imaginário… Dom Quixote é quase impensável como ser vivo e, no entanto, em nossa memória, que personagem é mais vivo do que ele?”.
Duas outras referências me enchem as medidas. A primeira, atribuída a Michelangelo: Não faço esculturas, apenas retiro o excesso de pedras. A outra, de um escritor japonês, por cujo Nobel em Literatura sigo torcendo. Trata-se de Haruki Murakami, que assim se expressou em Killing Commendatore: Sempre desfrutei o momento, cedo de manhã, em que olho intensamente para a tela toda branca. Chamo-a de ‘Tela Zen’. Ainda não pintei coisa alguma, mas é mais do que um mero espaço em branco. O que se esconde naquela tela branca é o que haverá de emergir. Olhando mais atentamente, descubro várias possibilidades, que se cristalizam perfeitamente em como devo prosseguir. Este é de fato meu momento de prazer. O momento em que a existência e não-existência se reconciliam”.
Quem sabe não seja esta a melhor maneira de se construir um personagem: reconciliar o que queremos que ele seja e o que ele mesmo pretende ser?
*André Amado é escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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