Colapso do jornalismo regional vai corroendo pilares da democracia
Tip O’Neill, antigo presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, ficou famoso por ter dito que “toda a política é local”. O argumento central era de que as grandes questões globais movem paixões e manchetes, mas importam menos na vida do cidadão comum do que as decisões tomadas na comunidade na qual ele está inserido.
Desde que a frase ganhou notoriedade – já há algumas décadas -, observadores da política americana vêm percebendo algumas transformações nesse conceito. Na esteira da polarização explosiva experimentada naquele país, as eleições locais passaram a refletir muito mais as questões ideológicas do que aquelas voltadas às realidades e necessidades comunitárias.
Esse fenômeno é intensificado pela aguda crise pela qual passa o jornalismo local nos Estados Unidos. O fechamento de redações dedicadas à cobertura de questões regionais – muitas delas centenárias – cresce a um ritmo assustador e suscita debates sobre os riscos desse processo para a democracia.
Na semana passada, em uma carta de 11 páginas encaminhada ao Congresso americano, o presidente mundial da Microsoft, Brad Smith, chamou atenção para o problema – em parte causado pelas gigantes da tecnologia. Smith relembrou a frase de O’Neill com o complemento de que “a democracia floresce ou murcha em nível local”.
Por aqui, caminhamos para o que pode ser a eleição mais polarizada desde o fim da ditadura militar. Nesse ambiente contaminado, as necessidades locais tendem a ter um peso cada vez menor na escolha dos eleitores.
Em condições naturais, candidatos a governador, senador, deputado estadual e deputado federal deveriam ser avaliados com base em suas realizações nos respectivos domicílios eleitorais, e não apenas no lado em que estarão na polarizada disputa federal.
Está ficando mais difícil, entretanto, conhecer a fundo o desempenho (ou ficha corrida) desses candidatos. Assim como na América, o jornalismo local agoniza por aqui, deixando no escuro vastas regiões do país, já batizadas no meio acadêmico de “desertos de notícias”.
Tecnicamente, os desertos de notícias são municípios nos quais não há nenhum tipo de veículo jornalístico. Os dados mais atualizados do “Atlas da Notícia”, organizado pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), mostram que 62% das cidades brasileiras não têm hoje nenhuma imprensa local, o que representa 18% da população.
O problema, no entanto, é bem mais grave. Mesmo em regiões que ainda dispõem de órgãos de imprensa, a cobertura local é muito pobre. Por todo o país, diários tradicionais enfrentam diversas dificuldades operacionais e financeiras e rumam a passos largos para a irrelevância.
Em cidades importantes, como João Pessoa (PB), o jornalismo impresso acabou bem antes de ser concluído o processo de inclusão digital da população. Em outras capitais onde os periódicos de papel ainda circulam, as páginas de política priorizam a reprodução de notícias nacionais, a despeito dos temas mais caros à comunidade.
Nesse cenário, prefeituras, câmaras de vereadores, assembleias legislativas e tribunais de Justiça vão se acostumando à confortável ausência dos repórteres. As descobertas de escândalos locais rareiam, enquanto prosperam os blogs e timelines politicamente comprometidos.
É o terreno fértil para a proliferação do que os americanos chamam “folk teories”, histórias distorcidas que se espalham pelas redes sem qualquer base empírica, que acabam ganhando respaldo em uma parcela da sociedade e, fatalmente, influenciando as urnas.
Sem fontes confiáveis de informação, os cidadãos ficam expostos ao buraco negro das redes sociais. A utilização massiva de bancos de dados com bilhões de informações pessoais fez estragos pelo mundo afora nos últimos anos, com maior destaque para as eleições americanas e o referendo do Brexit.
No caso americano, a Cambridge Analytica mapeou os polos de indecisos e, com base em informações pessoais surrupiadas, bombardeou toda essa gente com memes e mentiras contra os adversários de seus clientes. Deu certo.
No Brasil, teremos as primeiras eleições gerais sob a vigência de Lei Geral de Proteção de Dados, mas os efeitos da regulação sobre o uso das informações pessoais pelas candidaturas ainda é incerto. Certo é que não devemos subestimar a nossa vulnerabilidade à manipulação.
A influência das redes no pleito será, mais uma vez, gigantesca. Estudiosos projetam uma prevalência dos vídeos curtos, atualmente em moda em plataformas como o Instagram e o novato TikTok. Nesse oceano, o jornalismo profissional terá que gritar ainda mais alto para ser ouvido.
“Reconheço que a tecnologia tem criado tantos problemas quanto benefícios. E esses problemas pedem novas e urgentes soluções”, reconheceu o executivo da Microsoft em sua manifestação.
Na Europa e na Austrália, o acerto de contas entre o jornalismo e as gigantes tecnológicas está mais avançado. A imprensa australiana conseguiu garantir mais dinheiro para o conteúdo que coloca na internet.
Ainda assim, o quinhão dedicado aos jornais locais é miserável, insuficiente para dar alguma sobrevida. Na França, Canadá e Reino Unido, já se discutem formas de socorro estatal, por meio de um novo enquadramento tributário. Nesses países, já amadureceu a percepção de que a debacle do jornalismo regional pode vitimar também a democracia.
É bem provável que eu venha a ser criticado por considerar a possibilidade de uma política pública de respaldo ao jornalismo profissional – sobretudo em nível regional. Mais provável ainda é que boa parte dos críticos tenham o hábito de consumir algum tipo de noticiário sem pagar nada.
Outros caminhos podem ser sugeridos, o importante é que o problema seja reconhecido, afinal, de negacionismo já estamos bem servidos. Para esse e outros dramas nacionais, jornalismo sério é a vacina.