Cinquenta anos após começar na TV, ator ingressa na literatura com ‘Garimpo de almas’, romance que revela sua faceta menos irreverente, ‘da qual não dava para ficar falando na mesa de botequim’
Silvio Essinger, O Globo
RIO – Stepan, o boa praça. Stepan, o irreverente. Mas que tal Stepan Nercessian, o literato? “As almas me procuram e delas não fujo”, escreve ele em seu primeiro romance, o recém-publicado “Garimpo de almas” (Tordesilhas). “Tal como os seres humanos, elas trazem aflições e dúvidas. Muitas choram, inconformadas com o que o destino lhes reservou. Outras brincam, galhofam e se aprazem em perturbar a vida alheia. E existem as prepotentes, tiranas, que querem impor ao mundo sua visão.”
Delírios, desemprego, depressão, bullying, escravidão, assassinos de aluguel, animais selvagens… tudo isso está nas histórias que o ator de 67 anos conta em sua narrativa fragmentada. “Garimpo” é um livro em que ele se move pelas paisagens interioranas da infância e pela cidade grande. Que lembra o tempo passado de um Brasil violento e navega por uma atualidade não muito diferente.
— As coisas que a gente imaginava enterradas voltam, porque foram enterradas em covas rasas, elas são como aqueles caixões que boiam nas enchentes — filosofa Stepan, em entrevista por telefone. — Eu tenho esse outro lado (menos alegre) do qual não dava para ficar falando na mesa de botequim, mas que eu precisava colocar para fora. Essa dualidade sempre existiu na minha vida.
Páginas na gaveta
A vontade de escrever um romance vinha de mais de 20 anos. Rendeu muitos rascunhos, textos deletados por engano e umas 20 páginas impressas que Stepan resgatou de uma gaveta em 2018. Foram essas últimas que acabaram servindo de ponto de partida para o “Garimpo de almas”.
— Usei umas oito dessas 20 páginas e o resto veio todo como coisa nova — conta ele, que daí em diante recorreu a um processo muito particular de costura de histórias para estruturar o livro. — Eu não conhecia técnicas ou regras para se fazer um romance, não sabia dizer nem quem deveria ou não ser o narrador, fui descobrindo isso enquanto escrevia. Eu brinco no livro que são as almas me pedindo para contar suas histórias. Escrevi tudo de uma vez só, uma coisa atrás da outra.
Prefaciado pelo cineasta Cacá Diegues (com quem Stepan fez o filme “Xica da Silva”em 1976), “Garimpo de almas” tem um trecho muito simbólico para Stepan, no qual um menino pergunta a si mesmo, quando velho, o que foi que ele fez com a sua vida.
— Eu me pergunto muito isso. Às vezes eu olho para trás e penso que eu era muito melhor do que sou. Eu tinha menos juízo, mas era mais puro — analisa-se o ator, que na adolescência em Goiânia participava do movimento estudantil e era filiado ao “partidão” (o Partido Comunista do Brasil). — Quando veio aquela fase horrorosa (do AI-5), eu já tinha precedente na família. Minha irmã mais velha, Armínia, tinha sido presa. Acabei sendo proibido de estudar em colégio público, ganhei uma bolsa em colégio particular e no primeiro mês já estavam me acusando de ter soltado uma bomba.
Marcelo Zona Sul
No fim dos anos 1960, Armínia foi para o Rio e começou a namorar o diretor de cinema Xavier de Oliveira, que então planejava filmar o longa de ficção “Marcelo Zona Sul” (1970). “De sacanagem”, como diz, Stepan foi ao Rio fazer teste e acabou sendo foi escolhido para o papel principal: o do inconsequente garotão que namora a bela Renata (Françoise Forton, também estreando no cinema) e, ao ter a mesada cortada, resolve viajar pelo mundo de carona.
— Na época, eu ficava indo e voltando de Goiás, me achava muito jovem — diz. — Meu pai brincava que ainda eu não tinha idade nem para fazer papel de corno! Mas aí o Reginaldo (Faria) me chamou para fazer o segundo filme (“Pra quem fica, tchau”, de 1971), a televisão me chamou (para a novela “Bandeira 2”, também de 71) e eu fiquei. Eu tinha 17 anos, meu primeiro salário quem recebeu foi meu pai. Sou tão velho que o primeiro filme e a primeira novela que fiz foram em preto e branco!
O sotaque que, segundo Stepan, é uma mistura de goiano, cearense (do pai), armênio (dos antepassados) e dos 50 anos de Rio nunca o prejudicou na carreira de ator.
— Ficou um sotaque nacional. Depois fiz personagens do submundo carioca, barra pesada, como na “Rainha Diaba” (filme de 1974, de Antonio Carlos da Fontoura), e tem muita gente que não acredita que eu não sou carioca — jura. — O que sofri mesmo foi com essa tendência de, quando você faz bem uma coisa, te botarem para fazer ela sempre. Nesse sentido, o Chacrinha (papel pelo qual ganhou o Grande Prêmio de Cinema Brasileiro de ator em 2019) foi surpreendente. Tem gente que só foi ver que eu era um bom ator, depois de 50 anos, vendo o “Chacrinha”.
Vereador do Rio por duas vezes (entre 2005 e 2010) e deputado federal (2011 a 2015), Stepan se afastou da política, mas não do debate: ele vê a democracia em risco no país, com um presidente “absolutamente desnorteado” e negacionistas lotando os bares da Barra da Tijuca, onde mora.
— Estou perplexo com o momento da sociedade, muita gente pensa o oposto do que eu penso. São vizinhos, amigos e pessoas próximas vendo o mundo de uma maneira que eu nunca imaginaria que alguém ainda pudesse estar vendo. É cansativo, mas não dá para desistir — aconselha. — Não tem essa história de ficar descrente com a política e achar que essa é a hora de quem não faz política. É mentira. A política precisa fazer uma reforma em si mesma.
Com trabalhos que minguaram na pandemia (sua última participação na TV foi na novela “Éramos seis”, cujo fim foi antecipado pela Covid-19), Stepan optou há um ano “pelo isolamento radical”.
— Fui ao Retiro (dos Artistas, do qual é presidente) umas três vezes só, saí uma outra vez para gravar um “Sob pressão” e depois uns três dias para gravar um filme para Netflix. O resto do tempo eu fiquei trancado em casa. É um negócio que você não pode piscar, ou tá arriscado a morrer na praia.
Guia para inadimplentes e negativados
Os dias sem casa, o ator aproveitou para escrever mais um livro, o “Guia prático para inadimplentes e negativados”.
— Vou acrescentar o capítulo “e confinados”. O personagem ensina a arte de pedir, porque você não pode pedir errado — ensina ele, uma testemunha do melhor da boemia e da vida cultural do Rio desde os anos 1970, mas que, por enquanto, não pensa em autobiografia. —Talvez eu vá contando da minha vida ao longo das coisas que for escrevendo. Realmente fui um cara privilegiado, conheci os maiores artistas brasileiros, todo mundo ainda muito novo, e posso dizer que são todos meus grandes amigos. A única coisa que eu fico triste é de não ter nascido antes para conhecer Noel Rosa!