Com o mandato a meio caminho só é possível esperar de Bolsonaro mais do mesmo
No dia em que portadores da Covid-19 em Manaus começaram a morrer asfixiados por falta de oxigênio, Jair Bolsonaro participou, sem máscara, de uma festinha de aniversário no Clube Naval de Brasília. Apostou contra a imunização e, quando a vacina do Butantan, finalmente aprovada, começou a ser produzida, fez pouco de sua eficácia.
O país entrou em 2021 com repique da pandemia e nenhuma iniciativa federal para contê-la ou reduzir seu impacto devastador na vida da população mais pobre e na atividade das empresas. Em cada área de atuação do governo federal —educação, ambiente, segurança, economia, política exterior—, incompetência e irresponsabilidade se deram as mãos.
Nas suas muitas horas vagas, o presidente se ocupa alimentando suspeitas sobre as instituições eleitorais e soltando disparates sobre as Forças Armadas e a democracia. Comprova, dia sim, o outro também, que, além de não ter nem aptidão, nem ânimo para governar, abomina os valores e as regras do sistema.
Mas, como lembrou o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, em entrevista a esta Folha, “o regime democrático é para impedir que um governante subjetivamente autoritário possa emplacar um governo objetivamente autoritário”. Desse ponto de vista, as coisas estão funcionando.
De acordo com levantamento recente do jornal O Estado de S. Paulo, nos dois últimos anos o Executivo federal sofreu 33 derrotas no STF em ações iniciadas por partidos de oposição, questionando nomeações, decretos e outros atos administrativos. Da mesma forma, até este Congresso —de maioria francamente conservadora— engavetou às pencas medidas provisórias vindas do Palácio do Planalto. Nada menos de 64 perderam a vigência sem ser apreciadas e quatro diretamente rejeitadas, ante 58 convertidas em lei —algo inédito desde que a Constituição de 1988 entregou ao titular do governo esse poderoso instrumento legislativo.
No combate à Covid-19, muitos governadores desempenharam papel de contrapeso ao presidente, alheio ao que importa e dedicado a estimular os piores impulsos de seus ainda muitos apoiadores. Do lado da sociedade, também se destaca a disposição da grande imprensa de monitorar os governantes e das organizações sociais de denunciar seus malfeitos.
Com o mandato a meio caminho, só é possível esperar de Bolsonaro mais do mesmo. Eis por que, do estado desses freios que sustentam o sistema democrático —contra as piores intenções do ex-capitão— continuará dependendo sua sorte e a possibilidade de que os eleitores sigam tendo a chance de decidir com liberdade.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.